sexta-feira, 28 de agosto de 2009


O Presídio de Massangano
A CAPITAL QUE A HISTÓRIA ESQUECEU

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Há um tesouro histórico perdido a cerca de duas horas de condução desde Luanda, seguindo pela estrada para Catete e Dondo. Quem não o conhecer, dificilmente o descobrirá, pois para lá chegar terá de desviar da estrada principal uns 15 quilómetros antes de entrar na vila de Dondo, tomando uma estrada secundária que arranca pelo lado direito, mas que não só não tem nenhuma placa a identificá-la, como nem sequer é suficientemente perceptível por quem circula na via principal. Desenrolando-se ora pelo cimo de pequenos cabeços, ora nos vales, num constante sobe e desce, esta estrada é por si só um belo passeio, em que o descrever de cada curva desvenda novas perspectivas de uma paisagem que não cansa o olhar e onde os embondeiros são uma presença constante, a perder de vista. Quase sempre apenas com a largura de um veículo e em piso de terra, embora por vezes surjam ainda velhos troços de asfalto que conseguiram resistir ao desgaste do tempo e ao esquecimento, esta estrada, que não tem saída, é como que guardiã de um segredo bem guardado, que apenas é transmitido a alguns afortunados. Esse sítio tão precioso — especialmente para os amantes da história — chama-se Massangano e os participantes no 4º Raid T.T. Kwanza Sul, onde me incluí, foram alguns dos sortudos que puderam visitá-lo, chegando lá guiados por outros que o são muito mais, nem que seja pelo facto de terem conhecido este local histórico noutra altura, nalguns casos há muitas décadas, quando aquela vintena de quilómetros ainda era uma estrada de asfalto... Massangano situa-se numa pequena elevação de terreno que se evidencia na ampla planície onde correm os rios Cuanza e Lucala, entre a margem direita do primeiro e esquerda do segundo, ligeiramente a montante do ponto em que se juntam. Embora não seja senão um cerro, é o ponto mais alto da região, tornando-se num local estratégico para controlar toda a movimentação nas terras em redor e a navegação nos dois rios. Este aspecto não passou despercebido a Paulo Dias de Novais, quando em 1579 começou a subir o rio Cuanza, na liderança da primeira grande expedição pelo interior do Reino de Angola que visou estender a colonização portuguesa destas terras para além da faixa costeira. Assim, foi mesmo aí que o primeiro Capitão-Mor e Governador de Angola fundou o primeiro de uma série de presídios — postos da administração colonial, que deram origem a povoações e fortalezas — junto aos grandes rios. Em Maio de 1585, apenas dois anos após ter mandado construir o presídio de Massangano, foi aí que Paulo Dias de Novais morreu, tendo sido sepultado diante da igreja que tinha dedicado a Nossa Senhora da Vitória. A morte do Governador não foi, porém, a morte de Massangano, que continuou a desenvolver o seu papel determinante para implantar a soberania portuguesa no coração da terra dos Ngola, tornando-se numa importante povoação. Por isso mesmo, quando os holandeses assaltaram Luanda e tomaram conta da cidade, foi para Massangano que Salvador Correia — que era então o Governador de Angola — fugiu, refugiando-se neste lugar com toda a administração portuguesa. Durante sete anos, num período que foi de Agosto de 1641 a Agosto de 1648, Massangano foi oficialmente a capital portuguesa de Angola, tendo-se desenvolvido ainda mais. Porém, com a reconquista de Luanda e a definitiva expulsão dos holandeses, a 18 de Agosto de 1648, a capital voltou para onde ainda hoje está, enquanto que a pequena cidade criada nesse cerro entre o Cuanza e o Lucala voltou à sua modesta condição de um ponto de implantação colonial, com uma forte componente militar. Com o passar dos séculos, a importância estratégica de Massangano sob o ponto de vista militar nunca se perdeu, mas a chegada da paz a Angola até isso fez tornar-se irrelevante. Actualmente, este local, sem dúvida que um dos mais importantes da história de Angola e da sua colonização, não passa de uma discreta aldeia ribeirinha, com escassa população, uma esquadra policial quase sem guarnição, um posto de saúde que só abre quando há consultas médicas e a casa da administração local. Tudo o resto, salvo a igreja, situada numa das extremas da povoação, são ruínas. Ruínas imponentes, como a da Casa da Câmara, ou do Tribunal — que tinha a cadeia em anexo, como que para tudo ficar resolvido no mesmo sítio... —, cujas grossas e altas paredes de pedra souberam resistir ao passar dos séculos. A fortaleza, encostada a uma pequena falésia que desce para o Cuanza, entre a velha Casa da Câmara e a Igreja de Nossa Senhora da Vitória, já foi desocupada e esvaziada, restando apenas as grossas paredes, que também acusam a falta de manutenção. Até a igreja precisa urgentemente de um novo tecto, que ameaça desabar e deixa já o céu a descoberto nalguns pontos. No entanto, não é por isso que o povo deixa de a encher regularmente, sempre que o padre celebra missa. Dos primórdios de Massagano, esta foi a única herança que jamais se perdeu, ou um dos objectivos dos pioneiros não tivesse sido a cristianização dos povos angolanos...



Passado e presente frente a frente. Em primeiro plano, as ruínas da antiga Casa da Câmara; por trás, o edifício cor de rosa é onde actualmente está instalada a administração local. A esquadra da policia fica ao lado.


O túmulo de Paulo Dias de Novais, diante da igreja que o primeiro Capitão-Mor e Governador de Angola mandou construir, numa extrema da povoação.

O telhado ameaça desabar, mas a velha Igreja de Nossa Senhora da Vitória continua aberta ao culto e enche-se de gente nos dias em que o padre vem dizer a missa. Esta é a única rotina que nunca mudou desde que nasceu Massangano.

Com excepção de alguns turistas, que surgem ocasionalmente, ninguém vai a Massangano, senão os que lá vivem. E são poucos. Dentro da povoação, até o caminho foi conquistado pelo mato; só a marca dos rodados dos jipes é mais forte.


À porta da fortaleza, a placa que assinala a homenagem aos heróis de Massangano, realizada precisamente 300 anos depois de Luanda ter voltado à soberania portuguesa. Foi em 1648 e desde então este lugar encantador à beira do rio Cuanza não voltou a ter a mesma importância...

13 comentários:

  1. Olha, tem graça! Estas imagens de antigas ruínas lembram-me Portugal, pela primeira vez!
    Ainda não tinha visto aqui imagens em que pudesse dizer: "Isto parece-me ser em Portugal". Mas nestas fotografias, vejo edifícios abandonados como se vêem em muitas zonas do nosso país. Alguns desses edifícios até têm história, são castelos, fortificações, outros também são igrejas (onde já não há missas)... porém, o motivo do esquecimento destes edifícios será outro em Angola, certamente! Em Portugal eu sei o que é... há falta de casas de banho públicas e eles são excelentes para o efeito! Esses locais têm sempre um cheirinho especial (não esquecer que eu sou um cão, por isso dou importância a esses pormenores).
    Há situações engraçadas em Portugal no que diz respeito ao património. Sabes aquela história do pai e filho que estavam a cortar um menir em fatias porque, ponto 1:"Precisavam de pedra para fazer a entrada da vivenda recentemente construída!" e ponto 2: "Estava ali há anos e nunca ninguém ligou àquilo!" (ora, sinceridade acima de tudo)

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  2. Que VIAGEM... Podes considerar-me uma das "sortudas" que conhec(eu) já lá vão umas décadas, esse reduto da permanência dos "tugas"por terras africanas. Recordei com prazer algumas das minhas viagens pelo interior de Angola ao ler-te e ver-te neste blog que eu diáriamente consulto para viajar tb. As ruinas de Massangano estão registadas por mim em fotos (a maioria a preto e branco ainda)pois foi um dos locais que mais visitei na altura.
    Continua a proporcionar-nos estas VIAGENS e bem hajas por elas.
    Fico em espera de mais...
    Um beijão da São
    (Assunçao Roxo)

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  3. Outra fortaleza a necessitar recuperacao...
    Abracos

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  4. A minha irmã é mais sortuda do que eu. Ela viajou bastante por Angola, claro que nenguém conhece tudo, eu da viagem que descreveste só conheci a estrada até ao Dondo, para seguir para o Lobito. Mas apesar dos anos já passados é bom conhecer um pouco mais e para isso cá temos o nosso amigo a levar-nos em viagens fantásticas, que pena Massangano estar nessas condições. Mas é como diz o caniche, infelizmente o nosso Poetugal também sofre desse mal, o que podemos fazer?

    ah é verdade, eu fui ao Cubal sim, embora predominassem as fotografias de quem não conheço, a verdade é que nos leva àquela época, àquela forma de vestir e de fazer os casamentos, Gostei e também encontrei um apontamento da Ganda.

    bjs amigo continua
    Lena

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  5. Olá Caniche Vagabundo,

    Que agradável surpresa voltar a encontrá-lo a embarcar nestas viagens. Saiba que em Angola não vi muitos cães, talvez até porque recentemente houve uma epidemia de raiva e para controlar a situação foi necessário recorrer-se ao abate de muitos cães abandonados. A vida ali não anda fácil para os cães vagabundos, mas como o meu amigo indica, aqui também não, tal como aqui também temos muito património por recuperar, por respeitar, por valorizar. Já pensou quem isso acontece com os portugueses?...

    Mais umas festinhas nesse pelo branco,

    Alex

    PS - E a minha cozinha está sempre aberta para saciar a gulodice de um caniche vagabundo assim tão simpático!

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  6. Olá Namibiano,

    Tem toda a razão, mas acho que Massangano é muito mais do que uma forteleza a precisar de recuperação. É um local onde a memória do passado deve ser preservada para continuar a encontrar-se dignamente com as gerações actuais e todas as que vierem depois de nós.

    Um forte kandandu,

    Alex

    PS - O prémio está mesmo quase a ser atribuído. Porque, como já lhe disse, não gosto de oferecer distinções gratuítas. Para mim, uma recompensa é sempre merecida. Senão, onde está o seu valor?

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  7. Olá São e Lena!

    As manas foram das primeiras pessoas que me fizeram acreditar — e hoje já o posso confirmar — que Angola era uma terra fantástica. Continua linda como dantes e é pena que se fale tanto só dos aspectos negativos da sua realidade actual, pois Angola não se esgota aí e continua a encantar por muitos dos pontos positivos que noutros tempos já faziam com que se olhasse para a Metrópole, o nosso Portugal deste canto da Europa, como uma província desinteressante, onde tudo era velho, nomeadamente as mentalidades. Essa foi, aliás, a maior lição que me puderam dar. E toda a minha vivência ao longo destes anos — já nos conhecemos há mais de uma vintena!... — tornaram-me também um pouco africano, nesse sentido. A agradabilidade que têm manifestado quanto ao meu trabalho neste blog faz-me sentir a acertar contas. E com juros, porque haverá sempre novas histórias para vos contar!

    Beijos,

    Alexandre Correia

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  8. Olá Alexandre,

    Os seus posts continuam de uma riqueza histórica e factual que eu apenas consigo invejar.
    Sei que isso não é obra do acaso e que há muito trabalho prévio para poder escrever sobre estes assuntos, mas o facto é que através do seu blog tenho conhecido lugares, factos e histórias de Angola que me eram absolutamente alheios.
    Já agora, tem o ponto GPS de Massangano? Quem sabe um dia destes presto visita ao túmulo do fundador de Luanda...

    Abraço e contínue a surpreender-nos.

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  9. Caro PCS,

    Na verdade, não registei as coordenadas do entroncamento e, como digo no texto, não é evidente encontrá-lo. Mas fique descansado, que se quiser mesmo ir lá eu arranjo-lhe esses elementos. Vou contactar outro amigo que está em Luanda e que, tenho a certeza, tem essas coordenadas. A partir daí, é só seguir a estrada, que é linda e encontra-se num estado de conservação que não impede a passagem de um automóvel. Embora, claro, seja preferível ir de jipe, pickup ou similar.

    Abraço,

    Alex

    PS - E as férias em Portugal. Que tal?

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  10. Realmente concordo consigo, Alexandre. Massangano tem um valor histórico a preservar!
    Ao ver estas imagens, além da saudade, sinto nostalgia e alguma tristeza. As suas fotografias são fantásticas e adorei a foto da igrejinha de que gostei muito. Dá vontade de ter poder para mudar muita coisa...
    Beijinhos e não vou cansar de repetir: que bom foi chegar ao seu blog!

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  11. Olá Ana,

    Fique descansada, porque Massangano tem o seu lugar na história suficientemente bem definido para que não esteja ameaçado de passar a ser apenas uma memória. Já no que diz respeito à recuperação, embora Angola seja um país muito rico, não vejo porque Portugal não podia contribuir para preservar esse lugar histórico.

    Um beijo,

    Alexandre Correia

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  12. Em 2005 e 2006 fiz duas viagens "por Angola", totalizando cerca de 12.000 Kms ( o alcatrão desapareceu após o Dondo), No regresso de uma dessas viagens resolvi ir até Massangano, tinha acabado de ler "A gloriosa família", e o meu desapontamento foi tamanho como o vosso, pelo abandono e desleixo a que aquele património está votado.Fiquei com a impressão de que para a polícia que controla ?? o acesso, qualquer visitante é suspeito, será?

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  13. Caro Alves Ramos,

    Relativamente ao abandono das ruínas históricas de Massangano, estamos de acordo, ainda que eu acredite que todo esse património acabará, mais tarde ou mais cedo, por ser recuperado para imortalizar o lugar como ele merece. Quanto ao tratamento dispensado pelas autoridades policiais locais, devo dizer-lhe que, felizmente, não tive essa impressão. Aliás, conversei longamente com os três policias da esquadra de Massangano e até acabou por ser um encontro divertido. Talvez eu tenha tido sorte, ou o Alves Ramos tenha tido azar...

    Abraço,

    Alexandre Correia

    PS - E espero que tenha revisitado bem essas viagens ao viajar neste blog!

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