sexta-feira, 31 de julho de 2009


Um Desvio até às Quedas de Calandula
NINGUÉM CONHECE ANGOLA
SEM VISITAR AS CATARATAS


[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Assim que Camabatela ficou para trás, não tardou a que o asfalto desaparecesse para dar lugar a uma pista de terra, larga e de traçado rápido, com óptimo piso. O objectivo imediato era conduzir até Calandula, almoçar rapidamente no novo hotel da vila e depois passar uma boa parte da tarde a contemplar as famosas quedas de água. Até teríamos chegado mais cedo, não fosse o pó, que à passagem de uma caravana tão numerosa como a do 4º Raid T.T. Kwanza Sul perdurava no ar durante minutos, como se a estrada ficasse momentaneamente submersa num manto de nevoeiro acastanhado. E o pior era quando nos cruzávamos com veículos pesados, sobretudo uns camiões cisterna azuis, todos iguais, que nos apareceram diversas vezes pela frente, sempre aos pares, e em atitude de Reis da estrada. Por uma questão de sobrevivência, os camiões são normalmente veículos prioritários e nestas condições até era capaz de parar para os deixar passar à vontade! Mesmo assim, esta ligação foi das raras em duas semanas de percurso que se cumpriu rigorosamente de acordo com as previsões. O mais engraçado é que como provavelmente ninguém contava que chegássemos à hora marcada, o almoço não estava pronto e o tempo que ganhámos na corrida para Calandula perdemos a bebericar umas Cucas, Nocal, Ekas e outras que tais bem fresquinhas, aguardando pacientemente que o bufete abrisse. Quanto ao apetite, esse estava mais do que aberto e, talvez por isso, o almoço soube lindamente, apesar de banal: fatias de picanha ou pedaços de frango de churrasco, com os acompanhamentos da praxe, ou seja, o arroz, o feijão preto, e a batata frita, que nunca chegava para as encomendas. Depois de vários piqueniques ou nem isso, acreditem que é um encanto redescobrir o prazer de sentar à mesa para desfrutar de um almoço...
O maior prazer veio depois da sobremesa, quando voltámos a fazer-nos à estrada e guiámos uns minutos pelo ramal que termina junto ao topo das quedas de água de Calandula, local de visita obrigatória a qualquer um que pretenda conhecer realmente Angola. Supostamente, até assim terá pensado a comitiva do Príncipe Real Dom Luiz Filipe — o filho mais velho do Rei Dom Carlos I —, quando no Verão de 1907 visitou Angola, no decurso de uma viagem em que tocou Moçambique, São Tomé e Princípe, a Guiné e Cabo Verde — e que foi a única visita a África de um monarca português, até à implantação da República, três anos depois... Mas, a verdade é que esta vila e as quedas de água que lhe estão próximas já eram conhecidas por Duque de Bragança muitos, mesmo muitos anos antes do jovem príncipe herdeiro ter ido a Angola. Romanticamente, atribui-se-lhes — à vila e às quedas — o nome de Duque de Bragança como uma homenagem da visita real que, todavia, não foi além da faixa costeira, repartindo-se entre Luanda e Benguela, onde Dom Luiz Filipe chegou a bordo do paquete África, um nome que é também uma simpática coincidência. Na verdade, toda esta região da província de Malange em redor do rio Lucala e das suas quedas de águas era dominada desde o século XVIII pelo Presídio do Duque de Bragança, instalado no lugar onde se situa a actual vila de Calandula. A propósito, é importante sublinhar que naquela época a designação de presídio não significava uma prisão, mas tão somente um posto de ocupação colonial português, com presença de uma guarnição militar e de uma igreja ou missão católica. E o mais curioso é que antes das cascatas tornarem o lugar num dos mais importantes pontos turísticos do interior de Angola, a região de Duque de Bragança já era famosa, mas por outros motivos: o comandante da guarnição militar local nos anos 60 do século XIX era um importante naturalista, Francisco António Pinheiro Bayão, que se empenhava mais nestas funções que nas de Tenente do Exército, tendo registado 57 espécies de animais até então desconhecidas, classificando uma ave, quatro mamíferos, 16 anfíbios, 14 répteis e 24 insectos. Bayão não se limitou a observar e registar estes animais, como capturou exemplares de todos eles, que enviou para o Museu de Lisboa, ao cuidado do seu patrono, o não menos famoso político e zoólogo José Vicente Barboza du Barboza du Bocage — primo do poeta Manuel Maria Barboza du Bocage — que foi um influente Ministro de Estado, Par do Reino, Conselheiro do Rei e, entre outras coisas, fundador da Sociedade de Geografia de Lisboa. Mas quando Francisco Bayão foi vítima da fúria do Governador de Golungo Alto, a quem acusou de ter açoitado quatro soldados da sua guarnição de Duque de Bragança, a influência do patrono não foi suficiente para o livrar de dois anos de prisão, que acabaram com a sua carreira de naturalista. Ainda no interior de Angola, Bayão foi contemporâneo de outro renomado naturalista, o austríaco Frederico Welwitsch, que em 1858, quando trabalhava num levantamento botânico encomendado pelas autoridades portuguesas, descobriu, no deserto de Namibe, mas para o sul, uma estranha planta carnívora que remonta ao período dos dinossauros, há mais de 70 milhões de anos. Chamou-lhe então Welwitschia Mirabilis... Foi Welwitsch quem desvendou a Francisco Bayão o segredo da negritude das Pedras Negras de Pongo Andongo — onde também havia um Presídio português: deve-se à acção de umas algas filamentosas que crescem nas águas que ficam retidas nas rochas, depois das chuvas! Nesta jornada, também passámos por Pungo Andongo, mas já era noite cerrada e tão escura que os enormes rochedos não passavam de uma sombra negra, cujo contornos parecia tocar as nuvens.
Voltando atrás, a placa que à entrada da vila distribuí o trânsito para a povoação e para as quedas de água ainda deixa perceber o nome Duque de Bragança, apagado pelo tempo mas não esquecido pelo nome adoptado após a independência de Angola: Calandula, ou Kalundula, que é a designação original, em língua nativa, do lugar. Assinale-se ainda que estas são as segundas quedas de água mais altas de todo o continente africano, perdendo por três metros apenas para as
Victoria Falls — onde o rio Zambeze se despenha por 108 metros, contra 105 que mede este desnível do rio Lucala, onde as margens se estendem por 410 metros, enquanto as quedas que estabelecem uma fronteira natural entre o Zimbabwé e a Zâmbia se alargam por 1700 metros.


Não tardará muito a que todas estas picadas de terras se transformem em estradas asfaltadas. Quando isso acontecer, a viagem até às quedas de Calandula será ainda mais fácil e rápida, mas o traço negro do alcatrão mudará para sempre a paisagem e retirar-lhe-á algum do encanto actual.

Mais dois passos para a esquerda (a minha, não a da imagem) e já não teria escrito estas histórias, pois só o Super-Homem seria capaz de sobreviver a um mergulho destes. Quem não sofra de vertigens, vale a pena espreitar a queda de água bem de perto e sentir aquela humidade a envolver-nos.

Cerca de uma centena de metros mais abaixo do ponto de queda — 105 metros, para ser mais preciso — as águas do rio Lucala prosseguem pelo vale, abrandando a corrente à medida que se afastam da cascata. Na margem esquerda, o edifício que se vê ao fundo, mesmo sob o arco-irís, é a antiga Pousada, magnífica construção de arquitectura moderna que foi abandonada há mais de três décadas e que, muito provavelmente, um dia acabará por ruir, se não for rapidamente recuperada.

No jardim do hotel em Calandula, as quedas de água não são naturais, mas bastante artísticas: duas mãos que rasgam do solo e seguram cada uma a sua cabaça, que entorna vagarosamente um fio de água para uma pia enorme. Se tivesse chegado mais cedo, tinha-me era entornado na piscina, uns metros mais adiante.

Ainda ia em direcção a N'Dalatando — antiga vila Salazar — quando o sol começou a desaparecer entre o capim, anunciando o final de mais um longo dia por terras de Angola. Até à Fazenda da Cabuta, onde terminei esta jornada, faltavam várias horas de condução, cumpridas pela noite dentro em picadas poeirentas. Bem, não ia numa excursão, mas sim num verdadeiro raide em todo-o-terreno!...

quarta-feira, 29 de julho de 2009


Visita ao Passado das Memórias de Maria
LÁGRIMAS EM CAMABATELA

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Perdida num planalto do interior, a cerca de 250 quilómetros de Luanda, a vila de Camabatela — sede do município de Ambaca, nos limites da província do Kwanza Norte, encostado à do Uíge — é uma terra igual a tantas outras que cruzam as estradas em Angola e quebram a sensação de isolamento tão presente nos itinerários mais longos e remotos. Mas não, Camabatela não é uma terra qualquer. É a terra que marcou a juventude da minha amiga Maria, que tanto dela falou que até eu, quando lá cheguei pela primeira vez, achei que já a conhecia. A vila desenvolveu-se e viveu próspera durante apenas duas décadas, contadas entre meados dos anos 50 e 70 do século passado. Rodeada por grandes fazendas de cafezais, esta povoação tornou-se num importante entreposto comercial, onde o café se negociava entre produtores e intermediários, mobilizando grandes romarias de gente, automóveis e camiões nos dias de mercado; as camionetas chegavam vazias de Luanda e cheias das fazendas, carregadas de sacas de sarapilheira a rebentar pelas costuras com grãos de robusta — a qualidade mais produzida nas plantações do nordeste angolano — e horas depois isso invertia-se quando partiam pelo mesmo caminho, não sem antes se fazer fila à porta de uma das duas dependências bancárias, estrategicamente instaladas uma em frente à outra, em esquinas da larga avenida principal, diante da igreja. Era nessa altura de grande riqueza e movimentação que Maria, uma das mais animadas participantes no 4º Raid T.T. Kwanza Sul, passava as suas férias em Camabatela. Uns dias antes de lá irmos, confessou-me que depois de passar por Negage teria de adiantar-se à caravana, pois este regresso, após tantos anos desde a última visita, não só precisava de tempo, como também de alguma tranquilidade, que não teria se chegasse ao mesmo tempo que a dúzia e meia de Nissan Hardbody e Patrol, com cerca de meia centena de expedicionários. Maria não conseguiu adiantar-se e quando estacionou a sua pick-up no fim da avenida principal da vila, mesmo ao lado da singular igreja — com um estilo que lembra a igreja da Mina de São Domingos, no Alentejo profundo, e evidenciando uma recuperação recente que lhe deu um colorido novo à fachada — havia já tanta gente por ali que parecia que o padre ia repetir a missa dominical, terminada pouco antes. O calor do meio dia fazia-se sentir e a sombra das árvores em frente à igreja foram rapidamente ocupadas; Maria nunca se tinha apercebido dessas sombras, pois as árvores só foram plantadas no decurso dos anos 60, precisamente no período em que ali gozou algumas das "férias grandes", como era costume chamar-se às férias no final de cada ano escolar. Maria não se cansou de contar-nos tudo o que se recordava de Camabatela, indicando o que era ali e acolá, identificando o que continuava na mesma, como o cinema, o clube, a esplanada no centro do jardim — a sofrer uma profunda obra de requalificação em Junho de 2009, 52 anos depois de ter sido criado —, o velho posto da Fina, agora transformado numa "bomba de gasolina" da Sonangol, claro, e até o restaurante onde ia com o tio, o PIF-PAF. De sorriso aberto, como sempre, Maria parecia ter regressado à sua juventude, como se ao voltar a Camabatela tivesse entrado na máquina do tempo. De repente, desatou num pranto e as lágrimas escorreram-lhe abundantes pela face. Estava na hora de continuarmos esta demorada viagem através de Angola e a chamada do líder da caravana fê-la despertar para a realidade...


A antiga dependência do Banco Nacional de Angola, em ruínas. Trata-se, contudo de uma excepção, pois a maioria dos edifícios da avenida principal de Camabatela — essencialmente moradias de um ou dois pisos — continua a uso.

A fachada do cinema de Camabatela e, ao lado esquerdo, o clube local. Foram ambos construídos em 1957 e resistiram bem a este meio século, tão conturbado em terras angolanas.

Na esquina das traseiras de um dos quarteirões da avenida principal, o PIF-PAF era e continua a ser um ponto de encontro privilegiado em Camabatela, mantendo a sua função de restaurante e snack-bar, assim como de hotel, com quartos no primeiro andar.

quinta-feira, 23 de julho de 2009


No caminho de Uíge às Cataratas de Calandula...
ESCALA EM NEGAGE. ALÔ AB3?...

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

No final dos anos 50, o dispositivo militar em Angola era relativamente discreto e não dispunha, verdadeiramente, do suporte de uma força aérea. Foi nessa altura que se generalizaram os processos de independência em África que tornaram livres grande parte dos países até então considerados colónias de potências europeias, deixando o velho Império Português repentinamente isolado, como se de um momento para o outro Portugal tivesse ficado preso ao passado, ao mesmo tempo que os novos países à volta e os que se desligaram das colónias pareciam dar um enorme passo adiante, em direcção ao futuro. Imediatamente Portugal começou a sentir uma enorme pressão internacional, com particular incidência dos Estados Unidos da América, no sentido de adoptar medidas tendentes a uma descolonização. A recusa do Governo português — nessa altura ainda liderado por António de Oliveira Salazar — quanto a seguir uma política desta natureza levou os peritos militares a prever desde logo o que acabaria por acontecer: o despoletar de um conflito armado, que em Angola deflagrou a meio de Março de 1961. Antes que isso sucedesse, as chefias militares portuguesas começaram a desenvolver um plano para criar estruturas e reforçar as existentes, de modo a estender a presença a todos os lugares e a preparar-se para enfrentar o despertar dos movimentos de libertação armados. É neste quadro em que 1957 se desloca a Angola uma comissão mandatada pelo Estado-Maior da Força Aérea com a missão de definir a localização para implantar uma série de infra-estruturas para a aviação militar, desde algumas grandes bases até pequenos aeródromos de apoio. A província de Uíge era uma das que seria contemplada com os vários níveis de infra-estruturas aeronáuticas e para a base mais importante foi feito o reconhecimento de uma possível localização nos arredores de Carmona — a actual cidade de Uíge. Todavia, as autoridades da vizinha vila de Negage, cerca de meia centena de quilómetros a leste da capital da província, estavam atentos e ambicionavam atrair para junto de si essa base principal. Como tal, deslocaram-se a Luanda para apresentar uma proposta alternativa à Força Aérea e conseguiram receber uma visita de inspecção, que resultou na escolha de Negage para implantar o Aeródromo Base nº 3, conforme foi determinado por uma portaria publicada no Diário do Governo no último dia de Outubro de 1960. Curiosamente, nessa altura já tinha sido iniciados os trabalhos de construção da futura AB3 — como se tornaria conhecida a base — que viria a ser oficialmente inaugurada a 4 de Junho de 1962, muito embora tivesse começado a operar quase um ano e meio antes: os primeiros aviões, dois Auster provenientes de Carmona e um Nordatlas vindo de Luanda, aterraram em Negage na manhã de 7 de Fevereiro de 1961, quando estavam apenas compactados os primeiros mil metros da futura pista, ainda por pavimentar, tal como a generalidade das estruturas e edifícios de apoio; por exemplo, o centro de comunicações da base foi provisoriamente instalado na cozinha de uma casa de habitação, entre as diversas que tinham sido arrendadas para albergar o pessoal e os serviços durante a fase de construção. O gabinete do comandante ocupava a sala de jantar dessa moradia... Contudo, a partir do momento em que chegaram os aviões, a vida desta pacata vila perdida nos confins do Uíge mudou profundamente. Negage deixou de ser apenas um pontinho irrelevante no mapa de Angola para tornar-se numa escala importante da aviação militar, mantendo-se activa até hoje.
O mais incrível da história do AB 3 é que uma semana após a cerimónia oficiosa de inauguração, devidamente festejada com um almoço no Grande Hotel de Negage, quando começaram os ataques às fazendas de café espalhadas pelo Uíge — que deram início às hostilidades que ficariam conhecidas por Guerra Colonial — esta base foi fundamental para a evacuação dos colonos resgatados das fazendas atacadas. Mesmo longe de acabado e de ter condições de plena operacionalidade, o AB 3 passou a receber um movimento crescente, num vai-vem de Dakota's e Nordatlas que recolheram refugiados e procediam à sua posterior evacuação para Luanda. Ainda mais incrível é que então ninguém diria que a paz somente voltaria a Angola em 2002. E com a paz, o velho AB 3 perdeu a importância que teve durante as guerras — colonial e civil — e os reflexos não tardaram a fazer-se sentir na vila. Actualmente, a base aérea ainda lá está, mas já não é activa como dantes e Negage parece ter voltado a adormecer, como antes da chegada dos primeiros aviões, no início de 1961.
Quando visitei Negage, no início da sexta etapa do Raid T.T. Kwanza Sul 2009, apenas passei à porta do AB 3, mas entrei na vila e percorri-a de uma ponta à outra. Estava a meio uma tranquila manhã de sábado, soalheira e quente, a inspirar preguiça. Nem os cafés tinham gente, quanto mais as ruas. No centro da vila, as casas continuam iguais ao que eram há mais de quatro décadas. Nunca lá tinha estado, é certo, mas naquela meia hora senti-me a voltar ao passado, a uma época em que nem eu tinha nascido...


Discretamente rodeada por um jardim bem cuidado, uma das moradias mais finas, a meio de uma das artérias principais. Trata-se da residência do administrador municipal de Negage.

Noutros tempos, em que os meios de diversão eram escassos, o velho cinema desempenhava um papel fundamental na animação de quem vivia em Negage. Agora, continua em funcionamento, mas lá, como um pouco por todo o mundo, "ir ao cinema" já não tem o mesmo significado. A televisão e os video-clubes encarregaram-se de desfazer o encanto de uma sessão de cinema...



Bem no centro, o edifício de quatro pisos que se vê do lado esquerdo é uma das poucas excepções desta cidade, onde a maioria das construções são térreas ou, quando muito, elevam-se até ao primeiro andar, como, aliás, documentam as imagens.

Entroncamento à saída da cidade. A padaria ainda continua a cumprir a sua função, mas as instalações do Banco Nacional de Angola já há muito que foram desactivadas e o velho edifício dos anos 50 encontra-se parcialmente abandonado.

quarta-feira, 15 de julho de 2009


Passado e Presente de Angola em Livro
A ESCOLHA DO PROFESSOR MARCELO

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Actualmente, em Portugal livro que se preze tem de ser citado n'"As Escolhas de Marcelo", programa transmitido na RTP todos os domingos logo após o Jornal da Noite, em que Marcelo Rebelo de Sousa faz um balanço da semana, com particular enfase à vida política nacional. Incontornável enquanto comentador político, este Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa tornou-se também na figura mais importante para estimular a leitura de livros ao referir publicamente, no fecho de cada programa, alguns livros que escolheu, entre os muitos que todas as semanas recebe. No último domingo, uma das escolhas de Marcelo foi o livro recentemente editado sobre Angola, a propósito da quarta edição do Raid T.T. Kwanza Sul, cujas aventuras têm alimentado este blog desde que foi posto "online", há precisamente dois meses. Editado simultaneamente em Lisboa e em Luanda, pela Pangeia e pela Chá de Caxinde, respectivamente, DO KUNENE A CABINDA — HISTÓRIA E ESTÓRIAS DE ANGOLA apresenta em 224 páginas textos de 13 autores distintos, entre historiadores, investigadores e jornalistas, para além de especialistas em diversas áreas específicas. Esta obra, que foi editada graças ao patrocínio do Banco Keve — a única instituição bancária sedeada na província angolana do Kwanza Sul — teve a coordenação de Miguel Anacoreta Correia, acessorado por Eleutéria Ornelas, e exibe na capa uma fotografia minha, feita na terceira edição desta expedição, numa picada do município do Calulo. No interior, há mais uma dúzia de fotos da minha autoria, entre dezenas e dezenas de imagens que ilustram este livro, de leitura recomendada a todos os que se interessam por Angola e as estórias da sua história. Disponivel nas boas livrarias, custa 15 euros em Portugal. Se tiver dificuldade em encontrá-lo, pode sempre fazer um pedido enviando um email para mvrestinga@gmail.com. Boa leitura!

sábado, 11 de julho de 2009


A cidade do Café de Angola
VISITA AO UÍGE
NUMA MANHÃ DE PREGUIÇA

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

No nordeste de Angola, confinando com a República Democrática do Congo, o Uíge é das 18 províncias deste país a que se reparte por maior número de municípios: são 16 ao todo, com a cidade onde está instalada a sede do Governo Provincial a coincidir no nome da província. Hoje, dizer que fomos ao Uíge implica acrescentar se fomos à cidade ou apenas à província, mas antes, durante duas décadas, entre 1955 e 1975, essa duplicidade de nomes não exista, pois o Uíge era apenas a importante província do Café de Angola, e Carmona a sua capital - assim designada em homenagem a Óscar Carmona, que foi Presidente da República Portuguesa durante cinco mandatos, entre 1926 e 1951, que ficou na história por mais dois factos inéditos: foi o primeiro a ser eleito para este cargo, embora tal somente tenha acontecido em 1933, e foi o único que morreu no desempenho destas funções, tendo sido substituído interinamente por António Salazar até à eleição do seu sucessor. Atribuir o nome de António Óscar de Fragoso Carmona a uma cidade angolana era, nessa época, uma escolha de elevado prestígio e ao recair sobre o Uíge, pretendeu-se não só render homenagem ao velho Presidente, como sublinhar a importância da capital desta província. De tal modo que a Vila Marechal Carmona rapidamente foi promovida a cidade, passando então a designar-se simplesmente Carmona.
Quando era miúdo, para mim o Uíge era apenas um belo paquete da Companhia Colonial de Navegação, que várias vezes admirei atracado nos cais de Lisboa, quando ao domingo, depois da missa, ia com o meu pai olhar os navios, ou quando o meu irmão mais velho, já então um apaixonado por navios, me levava pela mão a atravessar a Avenida 24 de Julho e a passear pelos cais da Rocha e Alcântara. O Uíge era um dos paquetes que recordo, entre os vários que a frota portuguesa detinha nessa época dourada para a marinha mercante de Portugal. Desses paquetes, hoje resta apenas o Funchal. O Uíge há muito que foi para a sucata...
Claro que não me mantive na ignorância do que era o Uíge muito tempo. Ainda miúdo, na quarta classe, a última da instrução primária, tive de aprender a geografia do vasto Império Português, que terminou precisamente nesse ano. Se não soubesse dizer o nome de todas as províncias, as da Metrópole, as Insulares (como se classificavam as actuais Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores) e as Ultramarinas (Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Timor e Macau), bem como as suas capitais, principais rios e actividades, etc..., a minha professora tinha um método doloroso de fazer-me aprender, batendo-me vigorosamente na palma das mãos com uma régua de madeira. Nunca me esqueci do dia em que apanhei 16 de seguida, mas passei o ano com distinção!
Quando comecei a viajar por Angola, em meados dos anos 80, a guerra condicionava as deslocações e nunca tive grandes chances de aventurar-me por este país, salvo uma excepção para a fase de paz que se viveu em 1992. Nessa altura, rumei ao sul, mas quando estava a partir para conhecer o norte, o recomeço da guerra adiou essa descoberta. Foram, pois, muitos, muitos anos de espera até poder embrenhar-me pelos caminhos do norte e o Uíge não escapou a esta rota de descoberta. A oportunidade surgiu com a quarta edição do Raid T.T. Kwanza Sul, evento que tenho de reconhecer como o melhor passaporte para facilitar a dinamização do turismo em Angola e o conhecimento da realidade actual do país, ao promover todos os anos uma expedição envolvendo participantes angolanos e portugueses.
Assim, numa manhã de preguiça, plenamente merecida depois de um itinerário inesperadamente longo e cansativo que nos ocupou quatro vezes mais tempo do que o previsto, pude finalmente visitar o Uíge. Ou melhor, a cidade do Uíge, pois a província já a tinha começado a atravessar um par de dias antes, percorrendo caminhos fora de uso por entre as antigas grandes fazendas que fizeram desta a principal região de produção de café em Angola.
Depois de ter visto o pequeno filme rodado no início dos anos 70 em Carmona e que está disponível no YouTube (Angola-Carmona (Viagem ao Passado) Kandando Angola), e de ter folheado as páginas do livro de João Loureiro Angola - Memória em Imagens até ter decorado todas as fotografias, assim que cheguei ao Uíge não me senti um estranho na cidade. Isso já diz muito. Quer dizer, por exemplo, que grande parte daquilo que vi no filme e nas fotografias continua igual, como, aliás, mostro nesta pequena selecção de imagens. Mas, o melhor foi mesmo ter feito esta visita acompanhado pelo próprio João Loureiro, que ali passou anos marcantes da sua vida, tendo sido um dos últimos portugueses a sair de Carmona antes da cidade tornar-se em Uíge, faltavam apenas uns dias para a independência. Longe de ser a cidade mais bonita entre todas as que visitámos nesta expedição, Uíge tornou-se inesquecivel sobretudo por estas memórias. As minhas, de miúdo, quando pensava que era só um navio de passageiros e apanhava reguadas da professora, mas também as de João Loureiro, que nessa mesma altura era o Procurador-Geral Adjunto nesta região de Angola. Já conhecia os seus livros de postais e fotografias, mas as suas histórias são ainda mais ricas... e exclusivas, pois não estão ainda editadas em livro.

Ao alto, a Rua do Comércio, a mais importante do centro do Uíge. Em cima, os telhados do centro da cidade. Os edifícios públicos são os que actualmente se apresentam melhor conservados, mas o Uíge não foge à regra de reabilitação que observamos em todas as cidades angolanas e que gradualmente está a apagar as marcas de uma longa paragem no tempo e de uma guerra que durou décadas.
Em primeiro plano, prédio de habitação que remonta à época em que Uíge foi elevado à condição de cidade, em meados dos anos 50. Trata-se do penúltimo edifício do lado direito da Rua do Comércio, que termina com o Edifício Mazda, com apartamentos para habitação do primeiro andar e lojas no rés-do-chão, e que na ponta tem hoje um posto de abastecimento da Sonangol, onde antigamente havia um concessionário dos automóveis Mazda.
Bem que queria ter acedido à internet, mas o simpático funcionário, quanto muito, podia era ter procedido à dizitação desta foto que me pediu para lhe fazer. Ou seria digitação?... Seja como for, pela simpatia demonstrada, o jovem à janela devia ser o professor dos cursos de relações públicas, embora tivesse expediente para ministrar igualmente formação de "e muito mais..."
O talho estava fechado. Nesta manhã não se abateu gado e não havia carne para vender...

Ir buscar água a uma torneira pública na rua principal do Uíge. Uma rotina para muitas mulheres e crianças dos bairros que rodeiam o centro da cidade.
Sábado de manhã, o movimento era grande no centro da cidade.
Vista aérea da cidade de Uíge, na saída pela estrada para Luanda.

quarta-feira, 8 de julho de 2009


Depois de dois dias a banana-pão crua e laranjas...

OS SACRIFÍCIOS QUE VALEM
UM BITOQUE ÀS TRÊS DA MANHÃ

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Passava das três horas da madrugada quando cheguei ao Uíge e fui o segundo a estacionar no parque do Hotel Salala. Ao ver as horas, rapidamente fiz as contas e concluí que tinha arrancado de N'Zeto exactamente 44 horas antes, depois de ter tomado o pequeno almoço na modesta esplanada situada na ponta sul da vila, mesmo no entroncamento para o aeródromo. Ao longo destas 44 horas, quantas vezes me arrependi de não ter preparado um farnel para o caminho? Acreditem que foram muitas. Sempre que me arrepiava a comer uma laranja azeda, de tão verde ainda, ou a mastigar uma banana-pão crua, pensava numa sanduíche de fiambre como aquela que trinquei deliciosamente antes de sair de N'Zeto. Mas agora que já tinha chegado ao Uíge, estava na hora de receber a recompensa. Pedro Cristina, o responsável pela caravana, prometera que fosse a que hora fosse que chegassemos ao Uíge, estaria à nossa espera um verdadeiro jantar. E não mentiu! Na recepção, a jovem que me entregou a chave do quarto anunciou, como se fosse a coisa mais normal, que "a sala de jantar abre dentro de momentos". Ainda bem que não estava aberta, porque não sei se teria resistido a ir directo para lá ao invés, como fiz, de subir até ao quarto e tomar um duche, só descendo já a cheirar a lavado (e a Terre de Hermès, que o olfacto também estava a pedir alimento...) e com a sensação de estar mais leve, ainda que não propriamente por ter emagrecido. Quatro horas antes, na paragem que fizémos na vila de Toto, um pedaço de frango acabado de sair do churrasco estimulara o apetite, mas não chegara para retirar a fome acumulada em dois dias. Quando o empregado do restaurante do hotel me disse que "para além do que está ainda no bufete, estamos a preparar neste momento bitoques", nem queria acreditar. Passava das três da manhã e esperar mais uns minutos para poder comer um belo bife com batatas fritas acabados de fritar era um sacrifício que valia a pena. Nem toquei nas travessas do bufete e esperei pacientemente, mas aqueles minutos pareceram-me uma eternidade...

À saída de Quimaria acabaram-se as tréguas. Os sulcos profundos que rasgavam o caminho logo após a povoação impediam a passagem das pickups. A solução foi passar pela berma, o mais encostados que podíamos de um bananal, guiados pelas indicações de uma brigada de voluntários locais, que acompanhou esta caravana durante alguns quilómetros, caminhando à frente das viaturas ou, sempre que o piso permitia rolar mais rapidamente, sentados sobre a caixa de carga.


Pior do que ficar uma pickup atolada em lama era ficarem duas, ou até três plantadas no mesmo sítio. Aconteceu algumas vezes, as suficientes para que todos os participantes nesta expedição tivessem terminado a viagem graduados num nível elevado em termos de práticas de resgate de veículos atascados. E também um pouco mais experientes na condução fora da estrada, embora neste aspecto o nível de preparação dos condutores fosse muito diversificado; a verdade é que nem sempre a culpa foi da lama...


Abrir caminho no mato, a golpes de catana e de enxada, foi um ritual que se tornou tão frequente quanto indispensável no longo itinerário de N'Zeto para o Uíge. Sem a preciosa ajuda das populações que fomos encontrando pelo caminho não teríamos conseguido superar inúmeros obstáculos. No próximo ano, pá, enxada e cintas de reboque vão ser equipamento obrigatório das Nissan Hardbody preparadas para o Raid T.T. Kwanza Sul. Adivinhe lá porquê...

sábado, 4 de julho de 2009


Um amanhecer imprevisto no mato
ACORDAR NUM CEMITÉRIO!

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Felizmente, raras vezes entrei num cemitério e a maior parte delas foi por motivos puramente turísticos, como aconteceu em Manila, nas Filipinas, onde há uns anos, de uma assentada visitei dois: o dos chineses, que parece um enorme condomínio fechado de moradias, pois os jazigos da ala das famílias mais ricas parecem autênticas moradias, cada qual mais extravagante que a outra, e o dos americanos, onde milhares de cruzes brancas se alinham na perfeição num imenso campo relvado que se estende por colinas que ondulam levemente até um enorme paredão onde estão inscritos, em letras pequenas, os nomes de todos os que morreram a combater pelos Aliados nas batalhas que flagelaram a ilha de Luzón durante a Segunda Guerra Mundial - e foram mesmo muitos, ou esta então colónia norte-americana não tivesse sido invadida de surpresa horas após o fatídico ataque a Pearl Harbour, tendo sido também o cenário onde se travaram os derradeiros combates com os japoneses, momentos antes da rendição ter sido assinada. Ainda há poucos meses, em mais uma visita a Buenos Aires, voltei a passear tranquilamente no cemitério da Recoleta, um jardim de pedra que está recheado de construções do estilo Art Deco que são dignas de ser admiradas. Mas, confesso, nunca me passou pela cabeça adormecer num cemitério, quanto mais acordar. É, aliás, o último lugar onde esperamos que um vivo possa acordar. Aconteceu-me no decurso desta longa expedição através de Angola, quando a noite chegou muito mais cedo que o final do percurso reservada à quinta etapa do Raid T.T. Kwanza Sul. Naquele momento, a minha Nissan Hardbody era o penúltimo veículo de uma coluna e sabia, pelas comunicações rádio trocadas entre todos, que a caravana estava fragmentada em três grupos. Ainda antes de anoitecer, tínhamos passado por uma pequena aldeia e estimávamos alcançar a todo o momento Quimaria, a povoação mais importante desta zona, no extremo ocidental da província do Uíge. Não chegámos a entrar nesse dia em Quimaria, pois quando pela enésima vez os carros da frente ficaram atolados em lama, o líder da caravana baixou os braços e deu instruções para desligarmos os motores e esperarmos onde nos encontrassemos até que o dia voltasse a nascer, para só retomarmos a marcha com luz diurna. A prometida cama confortável com lençóis lavados e um duche retemperador antes do merecido jantar no Uíge já eram ilusões perdidas. Perdidas e amaldiçoadas pelo jejum que se prolongava e pelas perspectivas de uma noite mal dormida, apertado nos bancos da pickup e a sentir-me ser devorado por enxames de mosquitos que pareciam ainda mais esfomeados que eu. Com o escurecer, o mato à nossa volta encheu-se de ruído, como se fosse um concerto mágico dado pela bicharada que nos rodeava. Ouvir esses sons fez esquecer a fome e embalou-me no sono, deixando-me dormir até que, ao amanhecer, voltei a escutar a mesma sinfonia, acordando no meio deste semi-silencio, minutos antes do rádio se fazer ouvir, quando um dos companheiros avisou, maliciosamente, toda a gente que já eram cinco da manhã. Ao levantar a cabeça, assim que espreitei pela janela tive uma visão que, por instantes, me fez pensar que ainda estava a dormir e o que via eram as imagens de um sonho a passar-me pela mente. Mas não, era tudo verdade: aquela clareira onde tinha estacionado umas horas antes, quando o chefe anunciou que a jornada estava terminada, era mesmo um cemitério! Acordei onde normalmente todos desfrutam do sono eterno e devo dizer que me senti muito bem. Se por ali havia almas penadas, não quiseram nada comigo. Até os mosquitos acabaram por abandonar-me, concedendo-me tréguas. Claro que não foi um despertar normal, mas no meio daquele calor e humidade, não dispensei o pequeno luxo de tomar um belo banho, com direito a lavar o cabelo com champô, gastando menos uma garrafa de litro e meio de água. Saí dali mais limpo que ninguém. Pelo menos o corpo...
Dois quilómetros e duas horas depois, entrámos triunfantemente em Quimaria, onde estacionámos em frente da casa do administrador do município, no meio de uma multidão que aplaudiu ruidosamente os forasteiros. O caminho para o Uíge ainda era longo, muito longo mesmo para que acreditassemos que ainda chegaríamos lá antes de terminar este segundo dia de marcha. Desta vez, ninguém arriscou mais apostas, até porque se anunciavam muitos atoleiros pela frente.

Há muitos, muitos anos que não chegava a Quimaria uma caravana de veículos tão numerosa, nem com tantos estrangeiros. Não foi o regresso dos portugueses a estas paragens perdidas nos sertões angolanos, em terras do Uíge, mas apenas uma passagem que, provavelmente, será recordada por muito tempo.



Com as crianças de Quimaria. Eram tantas que só algumas couberam na foto.

quinta-feira, 2 de julho de 2009


Enfrentar os lamaçais da pista N'Zeto/Uíge
TRABALHOS FORÇADOS
NOS LAMAÇAIS DO NORTE DE ANGOLA


[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

A quinta etapa do Raid T.T. Kwanza Sul ficará para sempre na memória dos todos os que integraram esta caravana. Previa-se que fosse uma jornada dura, mesmo a mais difícil das 13 que compreenderam esta longa expedição através do norte de Angola. Mas nunca ninguém imaginou que fossem necessários dois dias inteiros e quase outras tantas noites para se alcançar o destino. Tudo porque choveu mais e durante muito mais tempo do que era suposto nesta altura do ano (final de Maio e início de Junho), inundando os caminhos, que nas zonas de vegetação mais densa e fechada tardaram em secar, tornando-se em verdadeiros atoleiros de lama, onde as 18 viaturas desta expedição ficaram presas repetidamente; tantas vezes que se perdeu a conta ao número de atascansos, que mobilizaram esforços contínuos, fazendo com que nos tivessemos sentido em trabalhos forçados. Literalmente!


Volvidos cerca de vinte quilómetros, a excelente pista de terra, larga e de bom piso, tornou-se num estreito corredor entre vegetação cerrada. Nestas condições, os primeiros 90 quilómetros foram cumpridos em meia-dúzia de horas, que desde logo mostraram ser impossível completar todo o itinerário — estimado em menos de 350 km — nas 12 horas previstas. Nesta altura, o pior ainda estava para vir...


Uma a uma, as pickups avançaram cuidadosamente pelos trilhos lamacentos. Muitas acabaram a ser rebocadas, num ritual que se repetiu vezes sem conta durante dois dias plenos de aventura. Foram jornadas desgastantes, mas que ninguém alguma vez esquecerá. Nestes lamaçais perdidos no norte de Angola, senti-me a reviver episódios semelhantes passados tantos anos antes em diversas das expedições do célebre Camel Trophy em que tomei parte: na amazónia, em 1992, foi assim durante dias seguidos, tal como um ano mais tarde nas selvas do sultanado de Sabah, no norte da ilha do Bornéu.


Em cima e abaixo, algumas imagens do troço mais difícil de todo o percurso. Os atascansos foram tantos que numa hora apenas se avançaram 300 metros. A tarde ía a meio e nessa altura faziam-se apostas entre a caravana quanto à hora de chegada ao Uíge. Os mais optimistas arriscavam a meia-noite, enquanto que muitos apostaram que ninguém chegaria antes das três horas da madrugada. Se alguém tivesse previsto essa hora um dia mais tarde, teria ganho, mas ninguém acreditou que o percurso se alongasse por dois dias inteiros e quase duas noites.




Durante longos quilómetros, a pista alternou passagens encharcadas como esta com troços lamacentos e mesmo terreno seco, nos pontos em que a vegetação abria e o sol facilmente secava a água das chuvas tardias que surpreenderam os participantes no 4º Raid T.T. Kanza Sul.


Nos trilhos enlameados e rasgados por sulcos profundos abertos pelo rodado dos camiões, as pickups só conseguiam passar pisando as bermas, mas a mínima escorregadela, tantas vezes tão inevitável quanto incontrolável, resultava num despiste. Felizmente, em tantos incidentes como o que a imagem documenta, só por uma vez não se resolveu ao fim de uns minutos de esforço colectivo. Foi quando o veículo de apoio mecânico, que seguia no fim da caravana, derrapou até tombar sobre um dos lados, imobilizando-se uns metros mais abaixo do trilho, com as rodas no ar. Para o recuperar foram precisos três dias de intenso trabalho e a caravana não esperou. O mais incrível é que a Nissan Patrol PickUp da TDA — o distribuidor da Nissan em Angola — não sofreu quaisquer danos, pois quando se despistou foi amparada pelo mato e acabou assente numa "cama" de vegetação espessa e lama.


O Toyota Land Cruiser da TV Zimbo — dotado de uma antena para transmitir imagens via satélite — foi uma das maiores vítimas das passagens enlameadas deste percurso. A preparação do veículo desta estação de televisão angolana observou inúmeros pormenores, mas ignorou um dos mais importantes quando se trata de rodar em trilhos de terra e estrada mal conservadas ou mesmo sem pavimento: os pneus! "Calçado" com os pneus próprios para estrada com que foi adquirido em Portugal, aventurou-se nos sertões angolanos com muito sacrifício...


Nem todos os atascansos foram penosos de resolver. Houve inúmeras situações em que bastou um empurrão para que as pickups deslizassem sobre a lama até que as rodas voltarem a pisar terreno firme e ganharem tracção para continuar a progressão.


A Nissan Hardbody da revista Todo Terreno tombada para fora da pista. Aconteceu por três vezes no difícil percurso que levou a caravana a demorar 44 horas a percorrer menos de 350 quilómetros desde N'Zeto, na costa do norte de Angola, ao Uíge, capital da província com o mesmo nome, no interior.