domingo, 6 de dezembro de 2009


Um olhar vago, outro tímido
A VELHA E A BEBÉ


[Texto e Foto: Alexandre Correia]

À beira da estrada, uns quilómetros mais abaixo de Sumbe, no mercado improsivado junto da ponte sobre o rio Quicombo, aquela velha que vendia bananas já amarelecidas despertou-me a atenção: estava ali, sentada no chão de terra, como se não houvesse mais ninguém por perto para além dela própria e da sua neta. O olhar vago, que não escondia tristeza, não explicava essa indiferença. Quando me aproximei e perguntei se as bananas eram boas para comer cruas, baixou os olhos e respondeu com um murmúrio tão baixinho que tive de ajoelhar-me também no chão para a conseguir escutar. Disse que não, que eram para cozinhar. A neta, assustada, já se tinha refugiado no colo da velha, escondendo a cara no ombro da avó. A bebé também não tinha um olhar feliz, mas não era triste como o da velha. Nem indiferente. Era apenas tímido, pois denunciou a sua curiosidade ao espreitar-me pelo canto do olho. Mas tal como a velha, quando os meus olhos se cruzaram com os da bebé, ela não resistiu e escondeu-se de novo, encaixando a cara entre o ombro e o pescoço da avó. Para logo a seguir voltar a espreitar sorrateiramente... Só largou a protecção do colo da velha quando eu me afastei. E então voltou a brincar sozinha no chão, enquanto a velha permanecia imóvel, com aquele olhar distante e triste, que eu nunca mais esqueci.

29 comentários:

  1. Belíssima história a ilustrar uma fotografia cheia de humanidade. Gostei muito....

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  2. Olá Alexandre,

    Mais uma história lindissima. E acompanhar uma das fotos mais sublimes que eu tinha visto no seu blog. Esta foto já me tinha impressionado como outra "mãe e filha" no texto "Rumo ao Sul".Sabe Alexandre, onde é que a criança se podia refugiar em segurança,senão no colo da sua avó. Sim porque a avó tem um olhar muito triste e sofrido mas concerteza tinha (tem)amor para dar, e a criança sente isso.Quantas pessoas tem um olhar supostamente (feliz)não quer dizer que o sejam...e nunca conseguiram dar aquele calor a um filho ou neto como demostra aquela foto. Alexandre, a cada texto eu fico mais impressionada com a sua cultura a nivel dos sentimentos humanos (não falando das outras,ok?). Alexandre continue assim ,pois é uma pessoa linda. Adorei...

    Um beijo

    Isabel Miranda

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  3. Quantas saudades de uma boa leitura...
    Parabéns meu caro, o texto é um verdadeiro poema em prosa e a foto é excelente, aliás como sempre e como vai o livro?
    Abracos
    Post Scriptum: Alex, posso publicar o texto e a foto no meu blog Cores & Palavras, com todos os créditos, claro.

    Kandandu

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  4. Confesso que já sentia saudades destas histórias angolanas...Nice picture :)

    Abraços

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  5. Sabe, olhares desses são mais vulgares do que pensamos e em todas as paragens - são o acumular de muitas mudanças que não nos trouxeram nada de melhor, são o efeito das ordens dos senhores da guerra, a descoberta terrível que não vale a pena... Aí, nessa terra que também é minha, onde os nossos olhos não conseguem alcançar tamanha imensidão, é fácil cair, muito mais fácil que levantar
    Obrigado por nos lembrar disso e força para continuar!

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  6. Um regresso feliz depois de uma notada ausência, mas a brindar-nos com uma bela história humana e uma fotografia que dispensa palavras. Um abraço.

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  7. Caro Alexandre
    A fotografia é espantosa. Realmente, os olhares de cada uma correspondem exactamente à sua descrição. Um olhar de quem muito viveu e talvez pouco feliz ...outro olhar de quem tudo terá para viver, o espanto e a desconfiança da criança. Mais uma vez nos brinda com uma descrição plena de humanidade e expressividade. Adorei!:)
    Bj
    Linda

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  8. Caro Alexandre,

    A raça humana não pára de me maravilhar no seu altruismo fotográfico. Descobri este blogue e tornei-me seguidora.
    Está entretanto convidado a retribuir a visita...

    ISIS

    BLOG DO CHARLIE

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  9. Caro Namibiano,

    Uma vez mais, sinto-me particularmente lisonjeado pelo seu pedido de reprodução deste texto e da foto que o acompanha no seu blog Cores & Palavras. E é com muito gosto que aceito a sua proposta! Quanto ao livro, o projecto continua firme. Aguardo uma definição de quem o poderá editar, entre várias hipóteses que se levantaram, o que inclusive me fez "aliviar" um pouco a publicação de mais textos neste blog, pois já me foi transmitido que é importante assegurar que pelo menos uma parte significativa das histórias do livro sejam inéditas. Daí algum "silêncio"...

    Kandandu,

    Alexandre Correia

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  10. Olá Filomena,

    Já pensou que uma parte muito significativa da população actual de Angola só agora descobriu o que é viver em paz? Se pensarmos que a guerra colonial começou em 1961 e que quando foi declarada a independência, em 1975, já tinha deflagrado a guerra civil que perdurou até 2002, com apenas dois breves "intervalos" determinados pelos acordos de Bicesse e de Lusaka, só mesmo as pessoas com uma idade mais avançada têm memória de uma situação pacífica mas, por terem atravessado mais de quatro décadas de guerra, até esses é natural que sintam uma tristeza ainda maior do que aqueles que só recentemente encontraram paz. Hoje, em Angola, felizmente que já não se vêem tantos olhares tristes como o da velha na foto.

    Beijo,

    Alexandre

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  11. Olá Bé,

    Pois eu também confesso que sentia saudades deste convívio com os "passageiros frequentes" das "viagens de alex". E saiba que foi ao ler o seu blog que decidi quebrar o interregno. Se... não tenho ido lá "matabichar", talvez não tivesse encontrado a inspiração que precisava para retomar esta escrita.

    Beijo,

    Alexandre

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  12. Caros Miguel,

    Ao comandante digo apenas que é um elogio especial o comentário à fotografia, pois vindo de um fotógrafo tão competente, que há décadas me habituou com retratos humanos admiráveis, até sinto uma ponta de vaidade. E ao Miguel que aposta no lado bom da vida, digo apenas que o seu comentário é certeiro: a força da fotografia é tal que dispensa as palavras. Mais palavras do que aquelas que escrevi.

    Um forte abraço aos dois,

    Alexandre

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  13. Olá Isabel,

    Se aquela velha não estivesse tão triste, sei lá porquê, quando me disse que as bananas que estava a vender não eram boas para comer cruas, talvez até me tivesse dado uma receita para as cozinhar. E garanto-lhe que lha passava logo, para partilhar com os milhares de leitores do Cozinhar com os Anjos. De resto, pode crer que sim, que eu vou continuar. Até a mostrar-lhe fotos como esta e a contar mais histórias.

    Beijo,

    Alexandre

    PS - Estou quase de partida para mais uma grande viagem na América do Sul. Essa será para contar nas páginas da revista TODO TERRENO, mas vou lembrar-me de si sempre que falar com um Chef; para lhe trazer algumas receitas, daquelas que até os anjosa caem em tentação.

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  14. Olá Linda,

    Conhece, com certeza, a expressão "olhos nos olhos"? Pois não há nada mais revelador dos nossos sentimentos que o olhar. E não foi preciso que a velha me contasse a sua história para saber que era triste. Bastou-me olhar. Por isso, não há como um olhar tímido de uma criança; pelo menos não é triste. Mas digo-lhe ainda que já vi alguns olhares bem tristes no rosto de crianças. E esses nem precisei de fotografá-los para não os esquecer...

    Beijo,

    Alexandre

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  15. Olá Isis,

    São geralmente os humanos que frequentam este blog, mas registo com agrado que os caninos também são apreciadores. Depois do Caniche Vagabundo, é um prazer acolher a Isis e a memória do Charlie nestas viagens de alex.

    Quando nos virmos, conta com uma festa!

    Alex

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  16. Alexandre,

    Quem sabe se o Alexandre não se volta a cruzar com essa avó? E aí já lhe pede a receita para as bananas. Que eu acredito que devia (deve) ser bem boa.

    P.S. Alexandre um muito obrigada por não se esquecer de mim quando estiver com algum chef. Espero que corra tudo bem...pois também fico à espera para ler nas páginas da revista TODO TERRENO essa viagem fantástica que com certeza vai ser...

    um beijo

    Isabel Miranda

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  17. Olá Alexandre,
    também dei pela falta dos seus textos e fotos.
    Realmente descreve na perfeição o que vemos e dei por mim a pensar, onde andaria aquele olhar ausente. Com aquela idade muitas histórias haveria para contar e pelo olhar, histórias doloridas.
    Quanto à menina e tudo o que diz respeito a crianças me toca muito, acho que está a aprender bem cedo os perigos que existem neste mundo e como tal busca a protecção no colo da avó.
    Beijos e boa viagem!

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  18. Olá Ana,

    Acho que ambos sabemos que a vida não se mede apenas pela idade. Realmente, todos os dias contamos mais um dia, mas há quem passe dias e dias, anos e anos seguidos sem que aconteça qualquer coisa na sua vida, tal como há quem viva intensamente cada dia e não precise de chegar a velho para ter uma quantidade de histórias vividas. Quando pensamos nelas, são os nossos olhos que denunciam os pensamentos que nos levam para longe, como se apenas o nosso corpo estivesse ali. E a profundeza desse olhar revela se são recordações tristes ou alegres. Os óculos escuros são indispensáveis para quem constantemente é absorvido por um monte de pensamentos... A velha não os tinha e fiquei com a mesma sensação da Ana: a sua memória era assombrada por recorações tristes.

    Beijo,

    Alexandre Correia

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  19. Olá Alexandre!

    É bem verdade que há olhares que ficam gravados na memória, difíceis de esquecer. E num olhar é possível captar estados de espírito distintos. Na foto que nos presenteia é notório o cansaço e a tristeza dessa velha, e a curiosidade da pequena. Há olhares que marcam e fotos que os fazem perdurar.

    Abraço,
    Silvia

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  20. Olá Silvia,

    Diz-se, e eu concordo, que os olhos falam. Falam muito, até, pois contam-nos aquilo que tantas vezes tentamos negar com as palavras. Mas também há olhares tão vazios, que não têm nada para contar. Foi assim que eu senti o olhar desta velha. Misteriosamente triste. Antes fosse apenas misterioso...

    Beijo,

    Alexandre

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  21. Já foi publicado aqui: http://coresepalavras.blogspot.com/2009/12/do-blog-as-viagens-de-alex.html

    Kandandu

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  22. Caro Namibiano,

    Foi um prazer visitar o seu blog coresepalavras.blogspot.com. Nao por uma questao de narcisismo, mas sim pela saudade que me deu do meu Pai quando começei a escutar uma musica do Zeca Afonso! E depois, continuei a ouvir Maria Betania... Oxala o meu amigo encontre mais motivos, como este, para divulgarmos mutuamente estas nossas mensagens, pensamentos, poemas.

    Um forte abraço,

    Alexandre Correia

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  23. Olááá...

    Depois de tanta coisa linda comentada pelos teus fieis seguidores,não querendo repetir, só te posso dizer... cá esperamos mais histórias, na revista e não só. Que da América tragas "riquezas" como trouxeste de Angola para nos contares e deliciares. Bem hajas amigo.

    Um beijo Lena

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  24. Olá Lena,

    Bem, quem não conheço é capaz de ficar a pensar que o meu mundo se limita a andar entre Portugal e Angola mas, na verdade, entre um e outro tenho andando constantemente por tantos outros países. Agora mesmo estou no Chile, junto ao oceano Pacífico, numa pequena cidade costeira chamada Chañaral, onde cheguei ontem à noite vindo da Argentina e de uma travessia dos Andes e do deserto um tanto aventurosa. E como a Lena diz, não faltam histórias desta viagem que estarei a viver mesmo até ao Natal, mas estas serão antes de mais para ser contadas numa grande reportagem da revista TODO TERRENO. Que me perdoem os leitores do blog...

    Beijo,

    Alexandre Correia

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  25. Então amigo,

    Todos sabemos que tu és das pessoas mais viajadas que eu conheço, mas agora estás desse lado do Atlãntico, por isso eu me referi ao que de bom e de aventura tu nos tragas daí. Pois que seja a grande reportagem na revista,
    porque estou certa que quem conhece a revista e quem te segue aqui no blog, logo que ela esteja nas bancas com certeza irão comprar, pois quem conhece a qualidade do teu trabalho e a qualidade da revista, estou certa que não vão deixar de adquirir.

    Meu Deus essa travessia de que falas deve ter sido cá uma aventura e tanto, espero para conhecer.

    Continuação de boa viagem e boas aventuras.

    bejo Lena

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  26. ola Alexandre

    Há uns anos estivemos horas a falar com um pastor, perto da serra da estrela, que nos disse que conhecia o mundo, isto porque tinha vindo a Lisboa uma vez na vinda.
    Essa mulher tambem já viu o mundo, mesmo sem sair da sua aldeia...e nós?...que já viajamos tanto e nao sabemos ver se as bananas estao boas para comer...conhecemos o mundo melhor que ela?

    Um beijo grande

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  27. Olá,

    Cada um de nós tem o seu mundo. Isso nao se mede sequer pelo número de países visitados. Mas se pensarmos nas experiências das nossas vidas, em tudo o que nos aconteceu, como sobrevivemos a todos os terramotos (acabei de saber, aqui à distância, nos confins do Atacama, no Chile, que houve um sismo enorme em Portugal, mas nao é desses que eu falo...) e que seguimos vivendo, nao tenho dúvidas em afirmar que temos um mundo mais amplo que o desta velha ou desse pastor que encontrámos há tantos anos. Nunca me esqueci desse fim de tarde e da longa conversa, tao agradável, que tive com o pastor. Quanto às bananas, em Portugal estamos habituados apenas às variedades que se comem cruas, como fruta, mas em muitos países que as produzem, há imensas outras variedades para comer cozinhadas; e era essa a dúvida que tinha. Por coincidência, também em Angola, uma vez livrei-me de rapar fome a doer (e outra vez rapei mesmo...) comendo banana-pao crua, que é horrível, mas alimenta...

    Beijo grande também para si, que eu sigo por aqui, entre vulcoes e um deserto admirável, onde o silêncio è impressionante. Sabe, estou num daqueles sítios onde é inevitável nao pensar. Em tudo. E em nada. E depois, à noite, tenho "conversado" com uns tintos que sao grandes companheiros!

    Alexandre

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  28. Oi. Já tinha saudades de te lêr... puco há a acrescentar pois teus seguidores já disseram de diversas formas o que qq um sente ao olhar a foto e oa ler a prosa poética que a legenda. Mais uma vez um Obrigada grande por nos proporcionares partilhar contigo as aventuras e emoções que sentes em tuas viagens.
    Aí pelas Américas do Sul, diverte-te e vê se sobra algum pedaço para partilhares connosco, os teus seguidores atentos. Na revista vai ser concerteza um deslumbre, mas aqui, é diferente pela rapidez dos diversos sentires que as pessoas ,assim que te visitam, manifestam -a ti e a tds nós.Um grande abraço e espero estar aqui de novo antes do Natal, senão um Natal em Paz e Alegria
    São

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  29. Olá Sao,

    Estou apenas a 700 km de Buenos Aires, depois de ter percorrido já mais de seis milhares de quilómetros entre a Argentina e o Chile, e de ter atravessado por duas vezes os Andes, de ter passado cinco dias acima dos 4000 metros de altitude, de ter cruzado em vários sentidos o deserto mais árido de todos, o Atacama, e de ter vivido um sem número de experiências, fantásticas a maioria delas, algumas menos agradáveis. Estas histórias irei contá-las sobretudo nas páginas da revista Todo Terreno. Infelizmente, o tempo e as dificuldades de ligaçao à internet nao me permitiram manter aqui, neste blog, o contacto que eu desejava. Mas sobram algumas histórias que valem a pena ser contadas no blog. Assim que eu puder!

    Beijo,

    Alexandre

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