segunda-feira, 28 de março de 2011



Recordações numa viagem de autocarro...
FINAL DE TARDE
NO TRÂNSITO DE LUANDA


[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

A tarde ia longa quando regressámos do Mussulo e desembarcámos no pontão entre os dois clubes náuticos, instalados num local que há não muitos anos era um lugar remoto nos arredores de Luanda, a sul, mas que agora está perfeitamente integrado na cidade. A mancha urbana de Luanda cresceu assustadoramente e o trânsito também. Tornou-se um lugar comum as pessoas referirem-se ao trânsito de Luanda como o inferno na terra, algo verdadeiramente dantesco, como não se encontra pior em lugar nenhum. Na verdade, para mim o trânsito sempre foi lento em Luanda...
Nos anos 80, quando ainda não havia assim tantos veículos a circular, já eram frequentes os engarrafamentos como consequência das estreitas medidas de controlo e segurança que então vigoravam: havia postos de controlo militares por toda a cidade e parar em todos eles para mostrar documentos e explicar de onde vínhamos e para onde íamos tornava extenuante a mais curta deslocação; durante o dia estes controlos eram sempre uma incógnita, pois nem sempre funcionavam, mas como nessa altura havia um recolher obrigatório durante a noite, quem saía depois do sol desaparecer não só precisava de ter um salvo-conduto que o autorizasse a circular fora de horas, como precisava ainda de ter muita paciência, já que era nesse período que o controlo apertava. Ninguém escapava a parar! Lembro-me que só na marginal, desde o largo junto à entrada do Porto de Luanda até à ponte para a ilha, havia inúmeros postos de controlo, que embora todos à vista uns dos outros, nem por isso se dispensava a paragem em todos eles.
A primeira vez que circulei pela capital angolana liberto desse apertado controlo foi no início de 1992, quando se vivia o ponto mais alto das tréguas estabelecidas pelos célebres Acordos de Bicesse; esses meses de paz quebraram muitas das restrições à circulação pelo país e isso sentiu-se logo no tráfego, que aumentou substancialmente, sobretudo em Luanda. Todavia, ainda estávamos longe, muito longe mesmo, dos engarrafamentos que encontrámos uma década depois, já com a paz ditada não por tréguas duvidosas, mas pelo termo definitivo da guerra civil que devastou Angola durante mais de um quarto de século.
Salvo três excepções, duas delas ditadas por atrasos insuportáveis nos voos à saída de Lisboa, cheguei sempre a Luanda sensivelmente à hora do crepúsculo e, como em qualquer grande cidade, esse é um dos momentos em que o trânsito é mais intenso. Em Luanda, agora diz-se que todas as horas são horas de ponta, mas é ao cair do dia que as longas filas compactas mais se adensam a cada cruzamento, num emaranhado de veículos que se prolonga pela noite dentro, até aliviarem já depois da hora do jantar. Os reis da cidade são os “candongueiros”, como chamam às furgonetas azuis que asseguram o grosso dos transportes públicos. Reparo que se tornaram também no alvo preferencial dos policias de trânsito, mas a acção destes últimos sobre os primeiros não chega sequer a ter um efeito dissuasor, como em Lisboa aconteceu com os radares fixos instalados nalgumas vias rápidas. Enquanto um “candongueiro” é parado por alguma irregularidade, ou simplesmente para verificar a respectiva documentação — por exemplo, a obrigatoriedade de todos os veículos disporem de seguro é uma das medidas menos respeitadas, talvez por ser ainda recente... — dezenas, para não dizermos centenas, passam ao lado, como que imunes a tudo e mais alguma coisa. Estes pequenos autocarros, que em Luanda já começam a ter concorrência de autocarros a sério, são geralmente furgões Toyota Hiace, comprados usados algures na Europa, quando teoricamente atingem o prazo de vida útil, rejuvenescendo por toda a África como transporte de passageiros, normalmente em percursos urbanos e interurbanos. A lotação média de nove lugares — existem versões de origem com quatro filas de bancos e 12 lugares — dá lugar a uma regra em que a palavra de ordem é “cabem todos e ainda mais um”. Daí que quando se envolvem em acidentes, estes furgões azuis — pintados num tom “azul cueca” que se identifica à distância, com o tejadilho branco — são particularmente letais. Dizem-me que uma das piores coisas que pode acontecer a alguém é envolver-se num acidente com um “candongueiro”. Imagino que seja o mesmo que ter um acidente com um táxi em Portugal; mesmo que não tenhamos a mínima culpa e que isso seja absolutamente evidente, não demorará a que o local da ocorrência esteja repleto de outros táxis cujos condutores assistiram a tudo e são unânimes em considerar-nos culpados. Bem, talvez em Luanda as coisas possam ser um bocadinho piores, pois não duvido que as discussões sejam mais acaloradas, nem que outros factores sejam tido em conta. Será igualmente praticamente em toda a África se um europeu tiver um acidente com um condutor local...
Tranquilamente sentado a bordo de um pequeno autocarro, um Toyota de três dezenas de lugares cujo modelo tem um nome bem engraçado ¬— é um Toyota Optima... — e um condutor ainda mais, atravesso descontraído e demoradamente grande parte da cidade, até me apear a meio da Rua da Missão, à porta do Hotel Trópico, que prevalece como uma das unidades hoteleiras de referência em Luanda, com um buffet impressionante, tão rico e diversificado que é uma ameaça perigosa para os bons “garfos”. Nos tempos difíceis, mesmo ainda no início dos anos 90, recordo-me que o Trópico era um “porto seguro”, mas estava longe de ser referência pela comida: o buffet era caríssimo e de uma pobreza franciscana. Pagava-se à entrada e uma vez, depois de desembolsar os “cinco contos”, encontrei todas as travessas e rechauds vazios. Quando reclamei, responderam-me que o problema era meu, que devia ter chegado mais cedo. E, claro, não podiam devolver o dinheiro. Não foi a refeição mais cara da minha vida, de modo algum, mas talvez a que teve a pior relação qualidade/preço e custo/benefício, pois limitei-me a rapar o fundo às travessas. E lembro-me que até nisso não estive sozinho, pois havia outros esfomeados como eu, que também chegaram tarde. No dia seguinte, à cautela, apresentei-me no Trópico antes da abertura do restaurante e fiquei ainda mais impressionado com o que vi quando as portas se abriram. Parecia o que um dia vi ao passar à porta do Casino Estoril às 15h00 em ponto, quando mais uma jornada de jogo estava a abrir e uma pequena multidão de viciados se apressou a correr para a sala das máquinas, como se estivem a perder uma fortuna. Ter ficado parado a olhar para a invasão do buffet do Trópico deixou-me outra vez limitado aos restos; a única diferença é que ainda estavam quentes.
Desta vez, todavia, a abundância é tal que já nem se formam filas em redor dos rechauds dos pratos quentes e das extensas mesas carregadas com travessas de “frios”, entradas, saladas e sobremesas. Na véspera, quando tinha chegado a Luanda, o meu grupo fora o último a servir-se deste buffet e parecia que éramos os primeiros. Nesta noite, íamos jantar fora e o autocarro esperou à porta enquanto fomos tomar um duche rápido — limpando o corpo do sal de um dia de praia — e aprontarmo-nos para ir “comer fora”. Quando voltámos a sair, a caminho da ilha de Luanda, o trânsito acalmara, totalmente. Demorámos apenas uns minutos, sempre a rolar. E ao desembarcar, só pensava como é absurdo considerar infernal o trânsito de Luanda. Se o compararmos com o trânsito de cidades como Manila, Bangkok ou Pequim, que nunca dormem. Quem se incomoda a circular pela capital angolana, não aguentaria atravessar uma destas capitais asiáticas...


A caminho do centro de Luanda, numa das vias rápidas com várias faixas de rodagem que facilitam o acesso desde o sul. O trânsito ainda não se fazia sentir...

... mas não tardou a que os engarrafamentos começassem a ganhar expressão.

As carrinhas dos "candongueiros" dominam o trânsito à hora de ponta e são infernais em Luanda. Mesmo nas circunstâncias em que não têm prioridade, mais vale ceder-lhe passagem.


Já bem no centro, o tráfego alivia. E o sol ainda não desapareceu no horizonte. Quem se queixa de Luanda é porque nunca andou em Bangkok, em Manila ou até em Pequim...

Pela hora do jantar, percorremos a marginal a caminho da ilha de Luanda. O trânsito já reduziu e a capital começa a ganhar uma aparência calma.

6 comentários:

  1. Passeei por Luanda, vi seus candongueiros, quase senti o aroma de tão farta refeição...aborreci-me no trânsito e, ao depois, vi um belo anoitecer, com a Cidade calma...
    Ótim reportagem, pena que acabou...
    Lindas fotos! Um beijo!

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  2. Olá Marina,

    Estes textos são como converss. Longas conversas, é certo. Mas pense nelas como uma boa refeição: o ideal é terminá-la antes de fartar. Assim, mantém o apetite pela próxima refeição e será um prazer enorme voltar a sentar-se à mesa. Espero que sinta o mesmo com estas "conversas", apesar de parecer que se trata sempre da mesma refeição...

    Beijo,

    Alexandre

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  3. Adorei o jeito com que você escreveu o post.
    Linda a última foto!

    Abraços,
    Antonieta.

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  4. Olá Antonieta,

    Ainda bem que gostou! E concordo que a última foto é linda. Luanda vista desde a ilha, que já não é uma ilha, é sempre bonita e agora ainda o é mais quando olhamos para a cidade de noite, toda iluminada.

    Beijo,

    Alexandre

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  5. Excelentes e saborosas conversas as tuas, Alexandre. Como sempre, consegues naturalmente exprimir e transmitir por palavras e imagens o que de belo e interessante o mundo tem. Parabéns mais uma vez pela Revista, parabéns mais uma vez por este magnífico espaço. E obrigada por ambos. Porque de cada vez que os leio, vivo um pouco mais intensamente as memórias que ainda detenho dos lugares por onde passei. E fico sedenta dos lugares que não vivi. Bjs e saudades

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  6. Madalena,

    Podes crer que eu mesmo revivo todas estas aventuras, vivências, pessoas e lugares cada vez que escrevo mais um pouco sobre estas viagens intermináveis em Angola. É como se a memória fosse ao mesmo tempo passado e presente. Talvez porque continuo vivo?...

    Beijo,

    Alexandre

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