sábado, 11 de julho de 2009


A cidade do Café de Angola
VISITA AO UÍGE
NUMA MANHÃ DE PREGUIÇA

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

No nordeste de Angola, confinando com a República Democrática do Congo, o Uíge é das 18 províncias deste país a que se reparte por maior número de municípios: são 16 ao todo, com a cidade onde está instalada a sede do Governo Provincial a coincidir no nome da província. Hoje, dizer que fomos ao Uíge implica acrescentar se fomos à cidade ou apenas à província, mas antes, durante duas décadas, entre 1955 e 1975, essa duplicidade de nomes não exista, pois o Uíge era apenas a importante província do Café de Angola, e Carmona a sua capital - assim designada em homenagem a Óscar Carmona, que foi Presidente da República Portuguesa durante cinco mandatos, entre 1926 e 1951, que ficou na história por mais dois factos inéditos: foi o primeiro a ser eleito para este cargo, embora tal somente tenha acontecido em 1933, e foi o único que morreu no desempenho destas funções, tendo sido substituído interinamente por António Salazar até à eleição do seu sucessor. Atribuir o nome de António Óscar de Fragoso Carmona a uma cidade angolana era, nessa época, uma escolha de elevado prestígio e ao recair sobre o Uíge, pretendeu-se não só render homenagem ao velho Presidente, como sublinhar a importância da capital desta província. De tal modo que a Vila Marechal Carmona rapidamente foi promovida a cidade, passando então a designar-se simplesmente Carmona.
Quando era miúdo, para mim o Uíge era apenas um belo paquete da Companhia Colonial de Navegação, que várias vezes admirei atracado nos cais de Lisboa, quando ao domingo, depois da missa, ia com o meu pai olhar os navios, ou quando o meu irmão mais velho, já então um apaixonado por navios, me levava pela mão a atravessar a Avenida 24 de Julho e a passear pelos cais da Rocha e Alcântara. O Uíge era um dos paquetes que recordo, entre os vários que a frota portuguesa detinha nessa época dourada para a marinha mercante de Portugal. Desses paquetes, hoje resta apenas o Funchal. O Uíge há muito que foi para a sucata...
Claro que não me mantive na ignorância do que era o Uíge muito tempo. Ainda miúdo, na quarta classe, a última da instrução primária, tive de aprender a geografia do vasto Império Português, que terminou precisamente nesse ano. Se não soubesse dizer o nome de todas as províncias, as da Metrópole, as Insulares (como se classificavam as actuais Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores) e as Ultramarinas (Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Timor e Macau), bem como as suas capitais, principais rios e actividades, etc..., a minha professora tinha um método doloroso de fazer-me aprender, batendo-me vigorosamente na palma das mãos com uma régua de madeira. Nunca me esqueci do dia em que apanhei 16 de seguida, mas passei o ano com distinção!
Quando comecei a viajar por Angola, em meados dos anos 80, a guerra condicionava as deslocações e nunca tive grandes chances de aventurar-me por este país, salvo uma excepção para a fase de paz que se viveu em 1992. Nessa altura, rumei ao sul, mas quando estava a partir para conhecer o norte, o recomeço da guerra adiou essa descoberta. Foram, pois, muitos, muitos anos de espera até poder embrenhar-me pelos caminhos do norte e o Uíge não escapou a esta rota de descoberta. A oportunidade surgiu com a quarta edição do Raid T.T. Kwanza Sul, evento que tenho de reconhecer como o melhor passaporte para facilitar a dinamização do turismo em Angola e o conhecimento da realidade actual do país, ao promover todos os anos uma expedição envolvendo participantes angolanos e portugueses.
Assim, numa manhã de preguiça, plenamente merecida depois de um itinerário inesperadamente longo e cansativo que nos ocupou quatro vezes mais tempo do que o previsto, pude finalmente visitar o Uíge. Ou melhor, a cidade do Uíge, pois a província já a tinha começado a atravessar um par de dias antes, percorrendo caminhos fora de uso por entre as antigas grandes fazendas que fizeram desta a principal região de produção de café em Angola.
Depois de ter visto o pequeno filme rodado no início dos anos 70 em Carmona e que está disponível no YouTube (Angola-Carmona (Viagem ao Passado) Kandando Angola), e de ter folheado as páginas do livro de João Loureiro Angola - Memória em Imagens até ter decorado todas as fotografias, assim que cheguei ao Uíge não me senti um estranho na cidade. Isso já diz muito. Quer dizer, por exemplo, que grande parte daquilo que vi no filme e nas fotografias continua igual, como, aliás, mostro nesta pequena selecção de imagens. Mas, o melhor foi mesmo ter feito esta visita acompanhado pelo próprio João Loureiro, que ali passou anos marcantes da sua vida, tendo sido um dos últimos portugueses a sair de Carmona antes da cidade tornar-se em Uíge, faltavam apenas uns dias para a independência. Longe de ser a cidade mais bonita entre todas as que visitámos nesta expedição, Uíge tornou-se inesquecivel sobretudo por estas memórias. As minhas, de miúdo, quando pensava que era só um navio de passageiros e apanhava reguadas da professora, mas também as de João Loureiro, que nessa mesma altura era o Procurador-Geral Adjunto nesta região de Angola. Já conhecia os seus livros de postais e fotografias, mas as suas histórias são ainda mais ricas... e exclusivas, pois não estão ainda editadas em livro.

Ao alto, a Rua do Comércio, a mais importante do centro do Uíge. Em cima, os telhados do centro da cidade. Os edifícios públicos são os que actualmente se apresentam melhor conservados, mas o Uíge não foge à regra de reabilitação que observamos em todas as cidades angolanas e que gradualmente está a apagar as marcas de uma longa paragem no tempo e de uma guerra que durou décadas.
Em primeiro plano, prédio de habitação que remonta à época em que Uíge foi elevado à condição de cidade, em meados dos anos 50. Trata-se do penúltimo edifício do lado direito da Rua do Comércio, que termina com o Edifício Mazda, com apartamentos para habitação do primeiro andar e lojas no rés-do-chão, e que na ponta tem hoje um posto de abastecimento da Sonangol, onde antigamente havia um concessionário dos automóveis Mazda.
Bem que queria ter acedido à internet, mas o simpático funcionário, quanto muito, podia era ter procedido à dizitação desta foto que me pediu para lhe fazer. Ou seria digitação?... Seja como for, pela simpatia demonstrada, o jovem à janela devia ser o professor dos cursos de relações públicas, embora tivesse expediente para ministrar igualmente formação de "e muito mais..."
O talho estava fechado. Nesta manhã não se abateu gado e não havia carne para vender...

Ir buscar água a uma torneira pública na rua principal do Uíge. Uma rotina para muitas mulheres e crianças dos bairros que rodeiam o centro da cidade.
Sábado de manhã, o movimento era grande no centro da cidade.
Vista aérea da cidade de Uíge, na saída pela estrada para Luanda.

10 comentários:

  1. Olá Alexandre,

    Parabéns pelo seu blog e pelas suas viagens!
    Curioso que há umas semanas vi uma reportagem penso que na TPA precisamente sobre o Raid TT Kwanza Sul e fiquei cheio de curiosidade sobre o evento.Agora já sei onde encontrar mais pormenores.
    Mesmo com a lenta internet angolana vou acompanhar os seus relatos.

    Abraço,
    Paulo César Santos

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  2. Saudações Alex!
    Muito interessante teu blog. viagens destemidas...mostrar as coisas como realmente são...desvendar mundos diferentes...enfim, viver!
    Parabéns!
    Abraços.
    Samanta Lemos.

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  3. Alex,

    No BLOG DOS NAVIOS E DO MAR há mais elementos sobre as características e história do nossos antigo Paquete UÍGE. Obrigado pela referência.

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  4. Caros PCS, Samanta e Luís Miguel,

    Obrigado pelas mensagens e por apreciarem os conteúdos desta viagem. Parece que nunca fui a mais lado nenhum, mas acreditem que já estive em muitas, muitas dezenas de países, quase todos bem longe de Portugal, até porque me faltam muitos da Europa para visitar. Como sempre foi regra em todo o meu trabalho, como jornalista e como editor da revista Todo Terreno, também estes textos reflectem algo mais do que uma mera experiência pessoal; caracterizam-se por um elevado rigor e realismo, por forma a que quem eventualmente queira seguir o meu rastro encontre aqui indicações fiáveis e não convites a decepções.

    Um abraço e continuem a visitar as minhas viagens!

    Alex

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  5. As tuas viagens são imperdíveis!!! Parabéns pelo excelente trabalho!!

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  6. Alex, eu também quero conhecer todas essas províncias um dia. Por enquanto vou acompanhando as histórias pelo seu blog. Mas qualquer dia nos cruzamos por aí.
    abraço,
    Juliana

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  7. Olá, Alexandre
    Não vou repetir o que já tenho comentado. Surgiu-me só uma ideia depois de ler estes 3 últimos relatos.
    Porque não publicas um livro com esta tuas fabulosas e sempre muito vivas e vivenciadas reportagens de todos os Raids TT do Kwanza Sul? Sei que tens a Revista TT, mas acredito que o estilo empático da tua escrita e a forma de olhares o mundo, a par das referências históricas e do sentido crítico e de humor muito oportunos e especiais, teriam sucesso garantido. Para não falar das memórias que despertam e emocionam muitos dos potenciais leitores. É deliciosa a estória que não história do despertar no cemitério.
    E sabes uma coisa? Quando leio as tuas reportagens, acompanhadas por fotografias excelentes e muito bem seleccionadas, parece que estou a viver de verdade esses momentos tão bem descritos. Isso é importante, conseguires estabelecer essa ligação com o leitor, fazê-lo quase sentir o que relatas ou levá-lo a recordar episódios semelhantes já vividos, que consegues despertar com a singularidade objectiva, sensível e profunda das tuas reportagens.
    Continua e OBRIGADA pela partilha.
    Bjs da Madalena

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  8. Olá Madalena!

    Com um nome desses, só podia esperar coisas boas. Agradeço muito o comentário e confesso-te que esse livro é uma bela ideia que anda aqui a "fermentar" há algum tempo. Oxalá a ideia possa crescer e resultar num daqueles livros que de volta e meia vamos buscar à estante e basta folheá-los um pouco para fecharmos os olhos e sentirmo-nos a viajar, guiados pela imaginação e pelas recordações que esses livros nos trazem. É uma terapia que pratico com frequência, por exemplo, naquelas ocasiões em que a conversa não me agrada...

    Um beijo,

    Alex

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  9. Tão bom ter "descoberto" este blog com tantas viagens e descrições interessantes e contagiantes! Apesar de ter sentido sempre um "chamamento" especial pela América Latina, e aqui me encontrar actualmente (México), África é sem dúvida outro continente carregado de magia pela sua gente, sabores e ritmos. Seguirei assiduamente as suas aventuras. :) SM (Silvia Martins)

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  10. Olá Silvia!

    Já fiquei por dentro dos seus passeios no México e só aumentou ainda mais a minha vontade de conhecer este país. Confesso que não tenho nenhum "chamamento" especial por África nem pelas Américas, mas actualmente são os dois continentes que frequento mais assiduamente. Agora mesmo, antes de ler a mensagem que deixou, estava a definir as escalas de uma viagem de duas semanas pela América do Sul que estou a planear para daqui a uns meses; mas para o fim do Outono. Continuamos a encontrar-nos!

    Alex

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