segunda-feira, 31 de agosto de 2009


“Venham que o Pai vai fazer uma foto!”...
RETRATO DE UMA FAMÍLIA NUMEROSA

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Quando parei a pickup na berma da estrada, não havia ninguém à vista. Diante da casa, com duas portas reforçadas por um gradeamento de ferro, mas apenas uma janela sem qualquer protecção especial, havia apenas uma bicicleta, que repousava assente no descanso sob a roda traseira. Desliguei o motor e abri a janela para fazer uma fotografia à caravana que passava. Eram mais de uma dúzia de pickups, todas iguais, excepto na decoração que ostentavam. Uma a uma, iam mergulhando nas enormes poças que faziam a picada parecer um rio e cada vez que aceleravam, como que para fugir de um provável atoleiro, levantavam uma cortina de água lamacenta. E então, tornavam-se mesmo todas iguais, como se aquela água acastanhada as tivesse pintado.
O ruído a caravana atraíu alguém, que espreitou pela porta aberta e logo desapareceu na escuridão do interior. Instantes depois, voltou. Era um miúdo para aí com uns dez anos. Atrás dele veio outro e se não fosse a ligeira diferença de altura, diria que eram gémeos. Apareceu um terceiro, um pouco mais velho, e logo a seguir veio um adulto. Era o pai deles. Enquanto fotografava as pickups, ficaram ali a olhar-me, seguindo atentamente o que eu fazia, mas sem nada dizer. Quando as viaturas começaram a desaparecer ao longe, desapareceu também esse silêncio. Cumprimentei-os e responderam logo em coro: “Bom dia sim!” Perguntei se eram todos familiares. Disseram que sim. Então, ofereci-me para fazer um retrato à família. Nem precisei de ouvir a resposta para perceber que sim. Bastou ver os sorrisos que se rasgaram.
Agora já não precisava de permanecer resguardado no interior da minha pickup, porque já não corria o risco de ficar todo salpicado de lama. Os outros veículos já tinham desaparecido. Saí e apontei a máquina fotográfica aos quatro. Enquanto lhes fazia um primeiro retrato, o adulto gritou para dentro de casa: “Venham que o Pai vai fazer uma fotografia!”
Ele era o Pai deles, mas o meu cabelo levemente grisalho e a barba prateada fê-lo tratar-me carinhosamente por Pai. Por respeito e por aparentar ser o mais velho. Enquanto não chegava mais ninguém, avisou-me logo que a família dele era grande. Disse-lhe que não devia ser maior que a minha. Garantiu-me que sim, que era, “de certeza”. Deixei-o insistir que tinha uma grande família, convicto de que arrumaria a questão a meu favor quando o esclarecesse quanto à dimensão da minha família. Começam então a chegar algumas crianças. Uma vem com um bébé ao colo e se os alinhasse por alturas, a sua sombra desenhava uma escada. A diferença entre alguns não devia ser mais de um ano, pensei eu. Pela minha avaliação, achei que já tinha ganho e foi a minha vez de abrir o sorriso, antes de dizer-lhe: “Sabe, só irmãos nós somos doze... Metade rapazes, metade raparigas” — acrescentei, com a sensação de os ter impressionado. E ganho, claro.
Mas não ganhei. Continuavam a chegar crianças, que se iam dispondo alinhadas lado a lado, por trás da bicicleta. Quando me parece que estão todos, conto-os e declaro um empate. Empate, aliás, duplo, pois vejo tantos meninos como meninas. O homem sorriu ainda mais. Estava visivelmente divertido. Só nessa altura me respondeu: “Nós também somos catorze, se contar só com os filhos...” — e fez um sinal para trás de si. Então, timidamente, aparece a espreitar por trás dos outros, numa ponta do grupo, mais uma miúda. Tem, talvez, uns cinco anos, carregando também ela um bébé às costas, amarrado a uma capulana, como se andassem a brincar aos pais e às mães. Eram os dois que faltavam. Quando parti, tive a sensação de que estavam mais do que divertidos por terem ganho este braço de ferro. Senti que, acima de tudo, estavam orgulhosos por serem uma família tão grande.


Quando parei, ao lado da casa, para fotografar a caravana a passar naquela troço incrivelmente lamacento da picada, não havia ninguém por perto. Apenas uma bicicleta e uma porta aberta. Não tardou a estar diante de uma enorme família. Bem divertida. Ali, respirava-se felicidade!

Não paravam de aparecer crianças, que se iam alinhando ao lado dos pais, por trás de bicicleta. Nesta altura, contei-os todos e declarei um empate. Também somos 12 irmãos — disse-lhes triunfante...

Tinham-me pregado uma partida e estava na hora de divertirem-se com isso. O Pai fez um sinal e por trás do grupo apareceu uma menina com um bébé amarrado às costas. Agora não havia dúvidas e aceitei essa "derrota" com fair-play.

Dezasseis sorrisos. Todos da mesma família. E ainda pensava eu que tinha uma grande família...

21 comentários:

  1. Olá Alexandre,
    mais um momento bonito que me fez sorrir e enternecer. Familias numerosas e felizes com tão pouco não é? Imagino as dificuldades para criar tantos filhos no entanto só vejo rostos sorridentes.Acho que nos perdemos com tanta coisa que acabamos por não dar valor a outras tão importantes ou pelo menos a não dar a importância merecida.
    É bom vir aqui! Beijinhos

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  2. Olá Ana,

    Ainda bem que acha bom seguir nestas viagens, que procuram sempre não transportar tristeza, nem ter como destino a miséria. África é um continente impressionante, de tão belo, tão problemático, tão confuso. Angola não foge a nenhum destes adjectivos mas, infelizmente, normalmente só nos referimos a Angola por maus motivos, ignorando, ou votando ao esquecimento, que por ali também se sorri, também há felicidade. Lá, percebemos que miséria ou riqueza, segundo os nossos padrões, são coisas que não fazem o mesmo sentido. Ali, vive-se bem de qualquer maneira; quanto se tem, gasta-se, quando não se tem, espera-se que venham melhores dias, porque eles acabam por chegar. Mas isso ninguém conta. Ainda hoje, consigo recordar o riso alegre daquela família. E não há dinheiro que pague essa alegria.

    Um beijo,

    Alexandre Correia

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  3. Olá Alexandre,

    Não ganhou o “braço de ferro” mas tem também uma família numerosa! Dezasseis sorrisos, alguns mais tímidos do que outros pelo que se vê. É fantástico ver como as pessoas com escassos recursos se podem ser tão felizes. Como costumava dizer, quando visitei o Brasil, chega-lhes um prato de feijão e música para serem felizes. Aqui no México também, mas acrescentado-lhe a tortilha! Essa simplicidade dá-nos uma perspectiva muito diferente de tudo o que nos rodeia, principalmente, no que diz respeito a bens materiais.

    Um abraço,

    Silvia

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  4. Olá SM,

    Fazer essas fotografias foi um momento muito divertido desta longa viagem, que parece interminável, tantas as histórias que me trouxe. Como observou, são dezasseis sorrisos felizes. Os que eu vi, naquele momento, eram mesmo felizes. E só tinham uma bicicleta. E o mundo deles acabava logo ali, no caminho até à aldeia seguinte. Contar-lhes nuns minutos como é o resto do mundo foi delirante.

    Um beijo,

    Alex

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  5. Oláááá
    cá estou eu militantemente, agora, a viajar contigo e a ficar cheia de invejinhas de não ter tido oportunidade de assistir a situações que tu tiveste o previlégio de conhecer. Eu também queeeeroooo!!!
    Que delicia. Estas fotografias e o que presenciaste são a prova de que aquela terra tem tantas maravilhas, esta é uma delas. E que lição para todos nós que nos queixamos e queixamos...

    Muito obrigada amigo

    bjs Lena

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  6. Olá Lena,

    Sabe bem que eu adoro miúdos. E também tenho muita paciência para os graúdos. Só não fiquei ali a conversar com esta numerosa família porque tinha esta grande viagem para continuar.

    Beijo,

    Alexandre Correia

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  7. Lena,

    E tenho de dar-lhe os parabéns por uma coisa muito engraçada que acabei de perceber: foi o meu visitante nº 2000! E sabe que mais, fico muito satisfeito de ver que no espaço de um mês, menos dois dias, para ser preciso, registei mais mil visitantes neste blog tão diferente da generalidade, pois raramente encontro algum com textos tão extensos, que ofereçam tanta leitura...

    Beijo,

    Alexandre Correia

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  8. quand y'en a plus, y'en a encore :)
    teria gostado fazer parte de uma família numerosa - infelizmente só somos 3 raparigas, a minha mãe é filha única e a família do meu pai (6 irmãos no total, 4 ainda vivos) é desunida... fica o sonho de ter mais do que 5 pessoas à mesa de natal.

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  9. Olá Li,

    Acredite que algumas das festas de Natal em casa da minha mãe foram dos momentos melhor passados de sempre. Então quando voltaram a juntar-se muitas crianças (actualmente, para além dos 12 filhos, a minha mãe tem 13 netos, entre eles as minhas duas filhas), e começámos a levá-las de noite à caça de gambuzinos, foram anos espectaculares, com noitadas que só acabavam com o amanhecer. Agora, são mesmo os miúdos que se entretêm a levar os mais pequenos às caçadas, num ritual que se repete e que tem sempre novas vítimas. Provavelmente, a próxima será a minha Madalena, que no Natal já terá dois anos e meio, idade perfeita para se atirar aos gambuzinos com um saco e um pau na mão!

    Beijo,

    Alexandre Correia

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  10. Alexandre!...
    Depois de falar do silêncio venho aqui e ele é quebrado com sorrisos...
    Estou embarcando nesta viagem contigo agora e nada melhor do que começar com sorrisos contagiantes...sinceros...espontâneos de pessoas tão simpáticas!...
    A família?...Sim uma família grande é a melhor coisa do mundo!...Tenho uma também que amo demais.
    Quero também agradecer o comentário carinhoso!
    Volte sempre que quiser...Eu voltarei aqui com certeza!


    Beijo

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  11. Famílias numerosas fascinam-me (muito pela culpa de ser filha única). Óptima história :)

    Abraços

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  12. Eu sou 2000, uau, espero que isso seja o prenuncio de muitos mais miles.

    Beijinhos Lena

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  13. leio esta postagem e apanho-me a pensar em valores, riqueza e felicidade. Haverá fortuna maior do que uma grande - não precisava de ser tão grande - família, unida e feliz?

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  14. Caro Miguel,

    Acredite que é uma fortuna incalculável uma grande família, unida e feliz. Se pensar assim, tenho de considerar que eu próprio sou um privilegiado. Imagina dar um jantar lá em casa e aparecerem-lhe mais de 30 convidados, só da família mais directa. E todos se falam, riem, conspiram. Vale mesmo a pena!

    Abraço,

    Alexandre Correia

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  15. Olá Carmem,

    Que bom que tenha "quebrado o silêncio" para entrar nesta viagem. Espero um dia poder encantá-la com histórias da sua terra. Já estive quase, quase, no Rio Grande do Sul, mas não ultrapassei os limites de Santa Catarina. Ora como adorava conhecer o Brasil todo e ainda só vou em nove Estados, é só uma questão de tempo para ir aí...

    Beijo,

    Alexandre Correia

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  16. Olá Bé,

    Por muito que tente, não consigo imaginar-me como filho único, porque vivi sempre numa casa cheia de gente. Isso é óptimo, sem dúvida, mas tem outro lado menos bom: custa-me imenso estar numa casa vazia, sem gente, sem barulho. Acho que nunca me irei habituar.

    Beijo,

    Alex

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  17. Olá Lena,

    Com a frequência que "viaja" por aqui, ainda ganha é milhas e depois vou ser obrigado a dar-lhe um prémio. Mas fica já prometido um. Quando for ao Cubal, e já sei que tenho de ir, para pagar esta promessa, claro, vou trazer-lhe uma colecção de fotografias tão grande que a Lena até vai imaginar-se a passear de novo por lá, casa a casa, rua a rua, fazenda a fazenda. A a dizer adeus ao combóio, sempre que passa, vagarosamente, naquele vai-vem entre o Lobito e o Luau.

    Um beijo,

    Alexandre Correia

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  18. Olá
    Entrei neste blogue hoje pela primeira vez. Achei muito interessantes as descrições das suas viagens. Adoro África, apesar de nunca ter viajado para lá. Sempre quis visitar Angola e outros países. Irei em breve. Obrigada pelas suas palavras. Há muito que ninguém me falava assim. Continuarei a passar por aqui. Boas viagens.
    Um abraço, Deolinda

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  19. Olá Linda,

    Ainda bem que chegou aqui, porque não faltam viagens para a levar a descobrir tantos lugares. Por enquanto, continuo a falar de Angola, um país tão grande, que já visitei tantas vezes, que as recordações e as histórias parecem-me inesgotáveis. É para lá que pensa ir em breve? De certeza que vai gostar. E não me agradeça, porque senão eu sinto-me obrigado a agradecer-lhe também e nunca mais saímos daqui. Continue a aparecer e não deixe de comentar o que entender.

    Um beijo,

    Alexandre Correia

    PS - As melhoras para o seu pé! E tem toda a razão quanto aos gatos.

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  20. OLÁ! Cheguei aqui pelo blog " sailors " da fragata Álvares Cabral, pois tenho lá o meu marido até Janeiro de 2010... Ele falou-me do blog e através dele... estou aqui neste que tanto me encantou! É verdade, há poucos blogs como este, pareceu-me um mini-livro, com tantos pormenores a comentar as belas fotos que vemos, PARABÉNS!!!

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  21. Olá Idalina,

    De facto, acertou em cheio. O objectivo deste blog é, precisamente, ensaiar as reacções dos leitores para o lançamento de um livro de histórias à volta de viagens. Estas histórias. Nem todas, claro, mas muitas delas. Obrigado pela sua opinião, que só confirma que este livro terá muitos leitores.

    Um beijo,

    Alexandre Correia

    PS - E diga ao seu marido que eu sou um grande apreciador do blog "sailors", onde tenho aprendido muitas coisas interessantes.

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