Fotógrafo, poeta e voluntário
O MEU AMIGO DANIEL
[Texto e Fotos: Alexandre Correia]
Penso frequentemente no que é a amizade entre pessoas e um destes dias dei comigo a reconhecer um dado curioso: cada viagem que fiz a Angola, e já foram várias, regressei com um novo amigo. Não na bagagem, mas sim no coração. E convém deixar bem claro que eu não faço amigos instantâneos, como quase toda a gente que eu conheço, que regressa de férias e fala do guia que os acompanhou como se fosse um amigo do peito, daqueles que cresceram connosco, mas que umas semanas mais tarde já nem se lembram do nome do “coiso”. Sempre aprendi a distinguir amizade de conhecimento. O que não quer dizer que não use e abuse igualmente da palavra amigo sem ter esse sentimento.
Daniel Vika é um dos meus amigos angolanos. Conhecemo-nos em cima de uma ponte, nos arredores de Sumbe, sul de Angola, quando olhava para o rio e imaginava uma forma diferente de registar uma imagem clássica, de um grupo de mulheres, rodeadas por imensas crianças, a lavar roupa junto à margem. Vi que ele tinha equipamento compatível com o meu e estava a usar uma objectiva mais pequena. Era o que me dava jeito para a fotografia em que estava a pensar e não me fiz rogado: pedi-lhe a lente emprestada. Foi assim que comecei a falar com o Daniel Vika. Trocámos de lentes por um instante e ele ficou encantado com a qualidade da minha objectiva, pesada, muito luminosa e com um alcance superior. Percebeu a diferença entre equipamento amador e profissional. E ficou morto de curiosidade por ver o que eu tinha feito com a objectiva dele. Vi logo que gostou. Os olhos dele até brilharam. Visionou várias vezes aquelas fotografias e foi tentar fazer iguais. Ficaram parecidas, mas ainda lhes faltava qualquer coisa. Tinham diferenças profundas na luz captada. Senti que ele estava consciente de que havia diferenças, mas não conseguia descobrir o que fazia essa diferença. Podia tê-lo confortado, dando-lhe uma palmada nas costas ao mesmo tempo que lhe dizia “— Parabéns, estão igualzinhas!” E assim, talvez ele nunca na vida conseguisse fazer uma foto, uma só, como as minhas. Mas não fiz isso. Desde miúdo, ainda nos bancos da escola, descobri que talento cada um tem o seu, ou simplesmente não tem, mas técnica só não tem que não quer, pois basta estudar. Quantas vezes não fiz trabalhos para colegas que nesse dia tiraram uma nota incrível, a que precisavam para ganhar “aquele” prémio dos Pais, mas que não voltaram a ter uma nota assim, precisamente porque só lhes emprestei o meu talento e por muito que tivessem estudado, continuava a faltar-lhe esse elemento, essencial para atingirem o patamar de notas onde eu os tinha feito chegar, um dia. Este era um caso assim. Já tinha emprestado o meu talento, ao permitir-lhe que visse os enquadramentos que eu tinha escolhido, mas ele nunca tinha estudado a técnica. Então ensinei-lhe o que ele tinha mesmo de saber para não voltar a cometer o erro em que persistia, e que o levava a queimar, por excesso de luz, muitas das suas fotografias. Quando ele percebeu que era mesmo isso, sentiu-se tão contente, tão motivado, que nunca mais parou de esforçar-se por fotografar tudo e mais alguma coisa, de todas as maneiras, para perceber por si mesmo quais os enquadramentos que melhor resultavam perante cada cenário, cada situação. Creio que Daniel não evoluiu muito mais do ponto de vista técnico, mas fiquei contente por verificar o seu empenho em desenvolver algum talento. Definitivamente, senti que tinha valido a pena ajudá-lo. E não me custou nada. Rigorosamente nada. Só fiquei a ganhar. Ganhei um amigo, que passou a tratar-me carinhosamente por mestre.
Ao princípio, Daniel tinha como que uma paixão por mim. Coitado, fazia-me sentir perseguido, tal a vontade de mostrar-me o trabalho dele, tal a curiosidade em espreitar o meu. Fazia-o de uma forma tão inocente e tão entusiastica que eu acabava por me sentir mal quando o mantinha à distância. Lembro-me de uma vez, em que fui apanhado de surpresa pela abordagem e não tive tempo de inventar uma desculpa consistente para me livrar dele, que só me ocorreu pôr um ar muito sério e distante, convencendo-o que estava a meditar. Fui tão convincente que ele até ficou embaraçado por achar que me podia estar a incomodar. E deixou-me ali a meditar, no meio de um pomar lindíssimo, cheio de pés de maracujá, na região que outrora era conhecida por Colonato da Cela. Daniel já era meu amigo e foi nesse dia que eu passei a ser amigo dele. E senti-me tão envergonhado por tê-lo enxotado que fiquei zangado comigo. Interroguei-me mesmo se não o tinha magoado, pois achava que tinha sido bastante rude. Arrependi-me e eu detesto arrepender-me do que faço. Até porque sempre achei que o está feito já não se desfaz. E sei que ficamos magoados quando somos enxotados pelos amigos, quando não têm paciência para nos aturar. Mas a inocência dele tranquilizou-me a consciência. Acreditara tão bem na minha desculpa que também ele tinha ficado envergonhado, por me estar a incomodar nesse momento de meditação. E não precisou de muito tempo para perceber quando é que me incomodava, para deixar de fazê-lo. Um ano depois, reencontrámo-nos em Luanda para fazermos uma nova viagem através de Angola e recebeu-me com um abraço caloroso, carregado de afecto, daqueles que só damos mesmo às pessoas de quem gostamos muito. E nem sempre. Nesse abraço, compreendi que sim, que a amizade entre nós tinha ganho o direito de chamar-se amizade.
Ao longo da vida, chamamos amigo a centenas e centenas de pessoas que vão passando por nós, que se cruzam no nosso caminho, ou até com quem simplesmente contactamos ocasionalmente. Nem sequer é preciso que esses contactos nos tenham marcado, tão pouco que essas pessoas tenham sido realmente simpáticas connosco. Basta que esses contactos não tenham sido antipáticos para que, ao referirmo-los, digamos que “somos amigos”. E quando se trata de pessoas importantes, como normalmente classificamos aqueles que detêm uma elevada posição social, uma rica conta bancária ou desempenham um cargo relevante — diremos muito importante nos casos, mais raros, em quer tudo isto se adiciona... — costumamos mesmo acentuar a palavra amigo, para que quem nos ouça não tenha dúvidas em como somos mesmo amigos. E sentimo-nos vaidosos, até um bocadinho importantes também, quando os nossos amigos metem aquele olhar de respeito por saberem que somos amigos de fulano, o tal que é muito importante. Mas nunca hei-de esquecer-me de uma noite em que jantei com um amigo, que me conhecia tão bem que passámos a noite toda a conspirar contra mim. Ele dizia mata e eu acrescentava logo esfola. Nunca disse tanto mal de mim a mim próprio como nessa noite, aliás, divertidíssima. E não sei se esse meu amigo alguma vez descobriu com quem jantou...
O Facebook é o melhor exemplo disto. Criaram-me uma conta e num ápice, sem que me tivesse apercebido, já tinha reunido um leque de amigos impressionante. Alguns nem sei se os cheguei a conhecer pessoalmente, embora a esmagadora maioria sejam, na verdade, pessoas com quem já convivi. O que tenho em comum com quase todos estes amigos é, ou foi, contactos profissionais. Sobre muitos, para além da profissão e das funções que desempenham, não sei mais nada. Nunca calhou. Alguns, por acaso até calhou e ao rever as suas fotografias na lista de amigos do Facebook recordo-me de termos estendido conversas para além dos assuntos profissionais, não raras vezes para temas tão interessantes que fizeram com que a nossa mesa tivesse sido a única em que ninguém se levantou depois de ter sido servido o café, no final de um jantar de convívio, como tão frequentemente sucede após uma jornada de trabalho. Foi assim que nasceram algumas amizades que perduraram no tempo e que continuo a considerar. Refiro-me agora aos amigos que passaram a fazer parte da minha vida. Como se fossem irmãos. Com os quais, por vezes até, trocamos confidências que nem fazemos com os próprios irmãos. Família é família. Não a escolhemos. Já os amigos, sim, são escolhas que fazemos. É um lugar comum que não gosto de usar, mas reconheço que é assim mesmo. E sou amigo dos meus irmãos todos. Mas tenho mais alguns, que são só amigos, mas tão amigos como os irmãos. Os amigos são os que nós adoptamos. E isso não quer dizer que eles também nos adoptem, nem mesmo que sejam nossos amigos. Como nós somos deles. Há até amigos que, no fundo, nem conhecemos realmente, mas que nem por isso deixamos de considerá-los amigos, neste sentido de estarmos disponíveis para eles, de termos toda a paciência e mais alguma, de nos envolvermos nos seus problemas, de nos preocuparmos com eles, de sentirmos um aperto no coração quando não estão bem.
E porque será que somos sempre todos amigos? Seria mais fácil dizer que por uma questão de hipocrisia generalizada, mas não é. Não é nada disso. Isso só é verdade quando olhamos para alguém de quem não somos amigos e lhe chamamos isso. Em todas as outras circunstancias somos todos amigos simplesmente porque se criou como que uma convenção. É uma forma de falar, simpática, mas mais nada. Apenas porque na verdade todos nos sentimos algo desconfortáveis por não chamarmos amigos às pessoas que conhecemos e fazemo-lo mais para deixar claro que não são inimigas.
Quando comecei a dizer que Daniel Vika era meu amigo, já sabia que ele sim, gostava de mim como amigo. Mas à medida que o fui compreendendo também eu passei a gostar dele. Por vezes, é um chato. Eu também. Ainda gosto mais dele por isso. Os chatos têm como que o dever de apoiar-se. E achar isso fez-me desenvolver uma paciência notável. E raramente perco a paciência. Muito menos com os amigos. Mesmo quando me magoam, mesmo quando não têm paciência. Aos amigos não regateamos defeitos. Aceitamo-los como eles são e pronto. Eu tenho imensos defeitos. Daniel também. Mas também tem um coração enorme e esforça-se tanto para conquistar amizades que até abusa de voluntarismo. E depois magoa-se. Quando percebe que esses momentos, em que se sente um herói para quem todos olham, passam num instante. Daniel é uma poeta. À sua maneira, claro, que nem todos os que com ele convivem apreciam. Estimular essa poesia tem sido a maior maldade que tenho feito aos que não a apreciam. Eu preferia que Daniel se concentrasse na fotografia. Mas ele gosta tanto da sua poesia que maior maldade era matar-lhe essa paixão. O maior embaraçado que lhe causei foi quando, há uns meses, lhe nasceu mais um filho. Estávamos juntos, em Angola, e disse-lhe que como somos amigos, das duas uma: ou me escolhia para padrinho do bebé, ou dava-lhe o meu nome. Coitado do Daniel, que andou aflito durante uns dias, sem coragem de dizer que já tinha as suas escolhas feitas e nenhuma me contemplava. Assim, continuámos apenas amigos. Mas podíamos ser compadres. Ainda podemos vir a ser.
O MEU AMIGO DANIEL
[Texto e Fotos: Alexandre Correia]
Penso frequentemente no que é a amizade entre pessoas e um destes dias dei comigo a reconhecer um dado curioso: cada viagem que fiz a Angola, e já foram várias, regressei com um novo amigo. Não na bagagem, mas sim no coração. E convém deixar bem claro que eu não faço amigos instantâneos, como quase toda a gente que eu conheço, que regressa de férias e fala do guia que os acompanhou como se fosse um amigo do peito, daqueles que cresceram connosco, mas que umas semanas mais tarde já nem se lembram do nome do “coiso”. Sempre aprendi a distinguir amizade de conhecimento. O que não quer dizer que não use e abuse igualmente da palavra amigo sem ter esse sentimento.
Daniel Vika é um dos meus amigos angolanos. Conhecemo-nos em cima de uma ponte, nos arredores de Sumbe, sul de Angola, quando olhava para o rio e imaginava uma forma diferente de registar uma imagem clássica, de um grupo de mulheres, rodeadas por imensas crianças, a lavar roupa junto à margem. Vi que ele tinha equipamento compatível com o meu e estava a usar uma objectiva mais pequena. Era o que me dava jeito para a fotografia em que estava a pensar e não me fiz rogado: pedi-lhe a lente emprestada. Foi assim que comecei a falar com o Daniel Vika. Trocámos de lentes por um instante e ele ficou encantado com a qualidade da minha objectiva, pesada, muito luminosa e com um alcance superior. Percebeu a diferença entre equipamento amador e profissional. E ficou morto de curiosidade por ver o que eu tinha feito com a objectiva dele. Vi logo que gostou. Os olhos dele até brilharam. Visionou várias vezes aquelas fotografias e foi tentar fazer iguais. Ficaram parecidas, mas ainda lhes faltava qualquer coisa. Tinham diferenças profundas na luz captada. Senti que ele estava consciente de que havia diferenças, mas não conseguia descobrir o que fazia essa diferença. Podia tê-lo confortado, dando-lhe uma palmada nas costas ao mesmo tempo que lhe dizia “— Parabéns, estão igualzinhas!” E assim, talvez ele nunca na vida conseguisse fazer uma foto, uma só, como as minhas. Mas não fiz isso. Desde miúdo, ainda nos bancos da escola, descobri que talento cada um tem o seu, ou simplesmente não tem, mas técnica só não tem que não quer, pois basta estudar. Quantas vezes não fiz trabalhos para colegas que nesse dia tiraram uma nota incrível, a que precisavam para ganhar “aquele” prémio dos Pais, mas que não voltaram a ter uma nota assim, precisamente porque só lhes emprestei o meu talento e por muito que tivessem estudado, continuava a faltar-lhe esse elemento, essencial para atingirem o patamar de notas onde eu os tinha feito chegar, um dia. Este era um caso assim. Já tinha emprestado o meu talento, ao permitir-lhe que visse os enquadramentos que eu tinha escolhido, mas ele nunca tinha estudado a técnica. Então ensinei-lhe o que ele tinha mesmo de saber para não voltar a cometer o erro em que persistia, e que o levava a queimar, por excesso de luz, muitas das suas fotografias. Quando ele percebeu que era mesmo isso, sentiu-se tão contente, tão motivado, que nunca mais parou de esforçar-se por fotografar tudo e mais alguma coisa, de todas as maneiras, para perceber por si mesmo quais os enquadramentos que melhor resultavam perante cada cenário, cada situação. Creio que Daniel não evoluiu muito mais do ponto de vista técnico, mas fiquei contente por verificar o seu empenho em desenvolver algum talento. Definitivamente, senti que tinha valido a pena ajudá-lo. E não me custou nada. Rigorosamente nada. Só fiquei a ganhar. Ganhei um amigo, que passou a tratar-me carinhosamente por mestre.
Ao princípio, Daniel tinha como que uma paixão por mim. Coitado, fazia-me sentir perseguido, tal a vontade de mostrar-me o trabalho dele, tal a curiosidade em espreitar o meu. Fazia-o de uma forma tão inocente e tão entusiastica que eu acabava por me sentir mal quando o mantinha à distância. Lembro-me de uma vez, em que fui apanhado de surpresa pela abordagem e não tive tempo de inventar uma desculpa consistente para me livrar dele, que só me ocorreu pôr um ar muito sério e distante, convencendo-o que estava a meditar. Fui tão convincente que ele até ficou embaraçado por achar que me podia estar a incomodar. E deixou-me ali a meditar, no meio de um pomar lindíssimo, cheio de pés de maracujá, na região que outrora era conhecida por Colonato da Cela. Daniel já era meu amigo e foi nesse dia que eu passei a ser amigo dele. E senti-me tão envergonhado por tê-lo enxotado que fiquei zangado comigo. Interroguei-me mesmo se não o tinha magoado, pois achava que tinha sido bastante rude. Arrependi-me e eu detesto arrepender-me do que faço. Até porque sempre achei que o está feito já não se desfaz. E sei que ficamos magoados quando somos enxotados pelos amigos, quando não têm paciência para nos aturar. Mas a inocência dele tranquilizou-me a consciência. Acreditara tão bem na minha desculpa que também ele tinha ficado envergonhado, por me estar a incomodar nesse momento de meditação. E não precisou de muito tempo para perceber quando é que me incomodava, para deixar de fazê-lo. Um ano depois, reencontrámo-nos em Luanda para fazermos uma nova viagem através de Angola e recebeu-me com um abraço caloroso, carregado de afecto, daqueles que só damos mesmo às pessoas de quem gostamos muito. E nem sempre. Nesse abraço, compreendi que sim, que a amizade entre nós tinha ganho o direito de chamar-se amizade.
Ao longo da vida, chamamos amigo a centenas e centenas de pessoas que vão passando por nós, que se cruzam no nosso caminho, ou até com quem simplesmente contactamos ocasionalmente. Nem sequer é preciso que esses contactos nos tenham marcado, tão pouco que essas pessoas tenham sido realmente simpáticas connosco. Basta que esses contactos não tenham sido antipáticos para que, ao referirmo-los, digamos que “somos amigos”. E quando se trata de pessoas importantes, como normalmente classificamos aqueles que detêm uma elevada posição social, uma rica conta bancária ou desempenham um cargo relevante — diremos muito importante nos casos, mais raros, em quer tudo isto se adiciona... — costumamos mesmo acentuar a palavra amigo, para que quem nos ouça não tenha dúvidas em como somos mesmo amigos. E sentimo-nos vaidosos, até um bocadinho importantes também, quando os nossos amigos metem aquele olhar de respeito por saberem que somos amigos de fulano, o tal que é muito importante. Mas nunca hei-de esquecer-me de uma noite em que jantei com um amigo, que me conhecia tão bem que passámos a noite toda a conspirar contra mim. Ele dizia mata e eu acrescentava logo esfola. Nunca disse tanto mal de mim a mim próprio como nessa noite, aliás, divertidíssima. E não sei se esse meu amigo alguma vez descobriu com quem jantou...
O Facebook é o melhor exemplo disto. Criaram-me uma conta e num ápice, sem que me tivesse apercebido, já tinha reunido um leque de amigos impressionante. Alguns nem sei se os cheguei a conhecer pessoalmente, embora a esmagadora maioria sejam, na verdade, pessoas com quem já convivi. O que tenho em comum com quase todos estes amigos é, ou foi, contactos profissionais. Sobre muitos, para além da profissão e das funções que desempenham, não sei mais nada. Nunca calhou. Alguns, por acaso até calhou e ao rever as suas fotografias na lista de amigos do Facebook recordo-me de termos estendido conversas para além dos assuntos profissionais, não raras vezes para temas tão interessantes que fizeram com que a nossa mesa tivesse sido a única em que ninguém se levantou depois de ter sido servido o café, no final de um jantar de convívio, como tão frequentemente sucede após uma jornada de trabalho. Foi assim que nasceram algumas amizades que perduraram no tempo e que continuo a considerar. Refiro-me agora aos amigos que passaram a fazer parte da minha vida. Como se fossem irmãos. Com os quais, por vezes até, trocamos confidências que nem fazemos com os próprios irmãos. Família é família. Não a escolhemos. Já os amigos, sim, são escolhas que fazemos. É um lugar comum que não gosto de usar, mas reconheço que é assim mesmo. E sou amigo dos meus irmãos todos. Mas tenho mais alguns, que são só amigos, mas tão amigos como os irmãos. Os amigos são os que nós adoptamos. E isso não quer dizer que eles também nos adoptem, nem mesmo que sejam nossos amigos. Como nós somos deles. Há até amigos que, no fundo, nem conhecemos realmente, mas que nem por isso deixamos de considerá-los amigos, neste sentido de estarmos disponíveis para eles, de termos toda a paciência e mais alguma, de nos envolvermos nos seus problemas, de nos preocuparmos com eles, de sentirmos um aperto no coração quando não estão bem.
E porque será que somos sempre todos amigos? Seria mais fácil dizer que por uma questão de hipocrisia generalizada, mas não é. Não é nada disso. Isso só é verdade quando olhamos para alguém de quem não somos amigos e lhe chamamos isso. Em todas as outras circunstancias somos todos amigos simplesmente porque se criou como que uma convenção. É uma forma de falar, simpática, mas mais nada. Apenas porque na verdade todos nos sentimos algo desconfortáveis por não chamarmos amigos às pessoas que conhecemos e fazemo-lo mais para deixar claro que não são inimigas.
Quando comecei a dizer que Daniel Vika era meu amigo, já sabia que ele sim, gostava de mim como amigo. Mas à medida que o fui compreendendo também eu passei a gostar dele. Por vezes, é um chato. Eu também. Ainda gosto mais dele por isso. Os chatos têm como que o dever de apoiar-se. E achar isso fez-me desenvolver uma paciência notável. E raramente perco a paciência. Muito menos com os amigos. Mesmo quando me magoam, mesmo quando não têm paciência. Aos amigos não regateamos defeitos. Aceitamo-los como eles são e pronto. Eu tenho imensos defeitos. Daniel também. Mas também tem um coração enorme e esforça-se tanto para conquistar amizades que até abusa de voluntarismo. E depois magoa-se. Quando percebe que esses momentos, em que se sente um herói para quem todos olham, passam num instante. Daniel é uma poeta. À sua maneira, claro, que nem todos os que com ele convivem apreciam. Estimular essa poesia tem sido a maior maldade que tenho feito aos que não a apreciam. Eu preferia que Daniel se concentrasse na fotografia. Mas ele gosta tanto da sua poesia que maior maldade era matar-lhe essa paixão. O maior embaraçado que lhe causei foi quando, há uns meses, lhe nasceu mais um filho. Estávamos juntos, em Angola, e disse-lhe que como somos amigos, das duas uma: ou me escolhia para padrinho do bebé, ou dava-lhe o meu nome. Coitado do Daniel, que andou aflito durante uns dias, sem coragem de dizer que já tinha as suas escolhas feitas e nenhuma me contemplava. Assim, continuámos apenas amigos. Mas podíamos ser compadres. Ainda podemos vir a ser.
Voluntarioso como poucos, Daniel não hesitou em despir-se para se meter dentro um lamaçal e ajudar a desatascar alguns veículos que tinham ficado retidos na lama. Só nunca largou a sua Nikon.
De máquina fotográfica na mão, Daniel posa no meio do capim, num admirável fim de tarde no Parque Nacional de Iona, bem no sul de Angola. Tínhamo-nos conhecido há uns dias e já me tratava por mestre. E queria que eu fosse amigo dele. Ainda não era...