terça-feira, 12 de julho de 2011



Maria José Nogueira Pinto 1952/2011
A ÚLTIMA VIAGEM

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Partiu na quarta-feira passada, 6 de Julho, ao princípio da tarde. Maria José Nogueira Pinto sabia que a sua última viagem não tardaria. Ao longo da sua vida, revelou-se uma mulher de coragem, daquelas que não se medem aos palmos, mas sim por não se deixar vencer por dificuldades, nem desistir de lutar perante desafios e causas em que acreditou e que defendeu com tenacidade. Porém, desta vez o adversário que enfrentou foi mais forte que a sua determinação em derrotá-lo. Conseguiu apenas resistir-lhe até as forças se esgotarem. Mas não há quem ganhe ao cancro quando este ataca como atacou.
Figura marcante na vida política portuguesa durante as últimas décadas, Maria José Nogueira Pinto tinha ocupado o seu lugar no parlamento apenas uns dias antes — como deputada da bancada do Partido Social Democrata — para participar na eleição do Presidente da Assembleia da República. Duas horas antes de morrer, terminou de escrever a derradeira crónica de muitas que ao longo dos anos publicou regularmente no Diário de Notícias. Escolheu como título uma frase do salmo 23: “Nada me faltará”. A sua crónica final foi uma despedida, consciente de que não escreveria outra. Nela, fez uma rápida retroespectiva da sua vida, de como conheceu o seu marido, Jaime Nogueira Pinto, dos altos e baixos que experimentou. “Graças a Deus nunca tive medo” — assegura. “Nem das fugas, nem dos exílios, nem da perseguição, nem da incerteza. Nem da vida, nem da morte. Suportei as rodas baixas da fortuna, partilhei a humilhação da diáspora dos portugueses de África, conheci o exílio no Brasil e em Espanha. (...) Como no salmo, o Senhor foi sempre o meu pastor e por isso nada me faltou — mesmo quando faltava tudo...” Despediu-se dizendo ainda que “...tem sido bom viver estes tempos felizes e difíceis, porque uma vida boa não é uma boa vida”. E termina confessando que na sua luta contra o cancro, contava “com a ciência dos homens e com a graça de Deus, Pai de todos nós, para não ter medo. E também com a família e com os amigos. Esperando o pior, mas confiando no melhor. Seja qual for o desfecho, como o Senhor é meu pastor, nada me faltará”.
Fomos companheiros de viagem há alguns anos, numa destas expedições por terras de Angola. Reparei nela, como quem repara numa figura pública, quando embarquei no avião que nos levou de Lisboa a Luanda, mas só na capital angolana percebi que Maria José Nogueira Pinto integrava, juntamente com Jaime, o grupo que ia participar no 3º Raid T.T. Kwanza Sul, uma viagem que ficou marcada na memória de todos os que a viveram, em que atravessámos o deserto de Namibe e descemos até à foz do Cunene.
Mais do que a sua presença, até porque era pública a paixão por África e, em particular, por Angola, o que me surpreendeu foi a sua atitude. A viagem foi longa e os percursos duros. Aos participantes foram exigidos alguns sacrifícios que não foram, garantidamente, fáceis para ninguém, mas que suportou como todos os outros, não se recusando a seguir em frente e a desfrutar plenamente daquela aventura. Falámos poucas vezes. Apenas quando calhou. Recordo uma dessas ocasiões, em que a maioria dos expedicionários foi espreitar uma colónia de hipopótamos num rio a escassos quilómetros de Waku Kungo — como hoje se chama a antiga vila de Santa Comba, no centro do Colonato da Cela. Fomos dos poucos que renunciaram a essa caminhada e enquanto aguardavamos que todos regressassem para retomarmos o percurso em caravana, conversámos sobre as suas memórias mais fortes de Angola. Uns anos antes, numa ocasião em que eu estava em Rundú, no norte da Namíbia, olhando para Angola e para a povoação de Calai, separada de mim apenas pelas águas do rio Cavango — o “tal” que morre no meio do deserto do Kalahari e que todos conhecem por Okavango — um namibiano contou-me que nos anos 70, no caos que antecedeu a independência de Angola, chegaram ali imensos refugiados, que depois permaneceram longo período esquecidos e aprisionados em campos de concentração. O meu interlocutor lembrava-se até de um facto insólito de uma dessas caravanas de portugueses que fugiu de Angola atravessando a vau o rio Cavango. Segundo ele, no meio de camionetas, jipes, pick-ups e automóveis carregados de gente e de tudo o mais que pudessem levar, atravessou o rio um Porsche 911. Nessa altura, achei que o homem já estava a inventar um bocado e confesso que mesmo não esquecendo o que me contou, não o valorizei muito. Mais tarde, por mero acaso vi um episódio de um documentário da RTP que recordava esse êxodo de Angola. Havia imagens de uma longa caravana de veículos e no meio lá estava, de facto, o tal Porsche 911. Naquela tarde, enquanto ouvíamos ao longe os roncos dos hipopótamos, Maria José Nogueira Pinto contou que ela e o seu marido fugiram de Angola nessa caravana. E que depois também passaram bastante tempo internados num desses campos de concentração onde os sul-africanos retiveram os portugueses, sem que mais ninguém quisesse saber deles. Foram tempos duros e precários, que marcam quem os viveu. Como a marcaram. E para quem passou por tudo isso, as dificuldades e a falta de conforto que se experimentaram nalgumas fases do raide em que coincidimos como participantes não foram nada de mais. Compreendi então que o raide era para Maria José Nogueira Pinto não a aventura que eu sentia, mas sim um passeio, viajando de certo modo até no tempo. Agora estava ali para rever paisagens e até amizades, não para fugir de nada. E isso fazia toda a diferença no modo como encarou as dificuldades que todos tivémos de enfrentar. Era uma mulher sem medo, como escreveu na sua última crónica. Pequena em tamanho, mas enorme na coragem. Impressionou-me tê-lo sentido, quando a conheci pessoalmente. Não voltei a conversar com ela. Cumprimentámo-nos apenas em ocasiões de circunstância em que nos cruzámos e tenho pena de não ter conhecido melhor Maria José Nogueira Pinto. Porque tenho a certeza que a história da sua vida é fascinante!


Posto de abastecimento de combustíveis, no nordeste de Angola. O Senhor é Meu Pastor, Nada Me Faltará.

Maria José Nogueira Pinto entre as participantes no 3º Raid T.T.Kwanza Sul, em 2008. Esta foto foi registada no último dia da viagem, sobre a ponte Filomeno da Câmara, que cruza o rio Cuanza junto aos cafezais do Libolo.

Sexta a contar da esquerda, numa paragem a meio caminho entre Lubando e Huambo, Maria José Nogueira Pinto surge aqui ladeada por dois grandes amigos: Miguel Anacoreta Correia, de barba, e Fernando Leal Machado.

Em pleno deserto de Namibe, não muito longe da foz do Cunene, a carcaça de um velho Ford dos anos 50 é uma testemunha silenciosa de uma das mais dramáticas caravanas que em 1975 se organizaram para fugir de Angola. Esta, atravessou a foz do Cunene em jangadas improvisadas e as pessoas foram resgatadas pelas forças sul-africanas, imobilizadas entre o deserto com dunas intransponíveis e o Atlântico.