Um Desvio até às Quedas de Calandula
NINGUÉM CONHECE ANGOLA
SEM VISITAR AS CATARATAS
[Texto e Fotos: Alexandre Correia]
Assim que Camabatela ficou para trás, não tardou a que o asfalto desaparecesse para dar lugar a uma pista de terra, larga e de traçado rápido, com óptimo piso. O objectivo imediato era conduzir até Calandula, almoçar rapidamente no novo hotel da vila e depois passar uma boa parte da tarde a contemplar as famosas quedas de água. Até teríamos chegado mais cedo, não fosse o pó, que à passagem de uma caravana tão numerosa como a do 4º Raid T.T. Kwanza Sul perdurava no ar durante minutos, como se a estrada ficasse momentaneamente submersa num manto de nevoeiro acastanhado. E o pior era quando nos cruzávamos com veículos pesados, sobretudo uns camiões cisterna azuis, todos iguais, que nos apareceram diversas vezes pela frente, sempre aos pares, e em atitude de Reis da estrada. Por uma questão de sobrevivência, os camiões são normalmente veículos prioritários e nestas condições até era capaz de parar para os deixar passar à vontade! Mesmo assim, esta ligação foi das raras em duas semanas de percurso que se cumpriu rigorosamente de acordo com as previsões. O mais engraçado é que como provavelmente ninguém contava que chegássemos à hora marcada, o almoço não estava pronto e o tempo que ganhámos na corrida para Calandula perdemos a bebericar umas Cucas, Nocal, Ekas e outras que tais bem fresquinhas, aguardando pacientemente que o bufete abrisse. Quanto ao apetite, esse estava mais do que aberto e, talvez por isso, o almoço soube lindamente, apesar de banal: fatias de picanha ou pedaços de frango de churrasco, com os acompanhamentos da praxe, ou seja, o arroz, o feijão preto, e a batata frita, que nunca chegava para as encomendas. Depois de vários piqueniques ou nem isso, acreditem que é um encanto redescobrir o prazer de sentar à mesa para desfrutar de um almoço...
O maior prazer veio depois da sobremesa, quando voltámos a fazer-nos à estrada e guiámos uns minutos pelo ramal que termina junto ao topo das quedas de água de Calandula, local de visita obrigatória a qualquer um que pretenda conhecer realmente Angola. Supostamente, até assim terá pensado a comitiva do Príncipe Real Dom Luiz Filipe — o filho mais velho do Rei Dom Carlos I —, quando no Verão de 1907 visitou Angola, no decurso de uma viagem em que tocou Moçambique, São Tomé e Princípe, a Guiné e Cabo Verde — e que foi a única visita a África de um monarca português, até à implantação da República, três anos depois... Mas, a verdade é que esta vila e as quedas de água que lhe estão próximas já eram conhecidas por Duque de Bragança muitos, mesmo muitos anos antes do jovem príncipe herdeiro ter ido a Angola. Romanticamente, atribui-se-lhes — à vila e às quedas — o nome de Duque de Bragança como uma homenagem da visita real que, todavia, não foi além da faixa costeira, repartindo-se entre Luanda e Benguela, onde Dom Luiz Filipe chegou a bordo do paquete África, um nome que é também uma simpática coincidência. Na verdade, toda esta região da província de Malange em redor do rio Lucala e das suas quedas de águas era dominada desde o século XVIII pelo Presídio do Duque de Bragança, instalado no lugar onde se situa a actual vila de Calandula. A propósito, é importante sublinhar que naquela época a designação de presídio não significava uma prisão, mas tão somente um posto de ocupação colonial português, com presença de uma guarnição militar e de uma igreja ou missão católica. E o mais curioso é que antes das cascatas tornarem o lugar num dos mais importantes pontos turísticos do interior de Angola, a região de Duque de Bragança já era famosa, mas por outros motivos: o comandante da guarnição militar local nos anos 60 do século XIX era um importante naturalista, Francisco António Pinheiro Bayão, que se empenhava mais nestas funções que nas de Tenente do Exército, tendo registado 57 espécies de animais até então desconhecidas, classificando uma ave, quatro mamíferos, 16 anfíbios, 14 répteis e 24 insectos. Bayão não se limitou a observar e registar estes animais, como capturou exemplares de todos eles, que enviou para o Museu de Lisboa, ao cuidado do seu patrono, o não menos famoso político e zoólogo José Vicente Barboza du Barboza du Bocage — primo do poeta Manuel Maria Barboza du Bocage — que foi um influente Ministro de Estado, Par do Reino, Conselheiro do Rei e, entre outras coisas, fundador da Sociedade de Geografia de Lisboa. Mas quando Francisco Bayão foi vítima da fúria do Governador de Golungo Alto, a quem acusou de ter açoitado quatro soldados da sua guarnição de Duque de Bragança, a influência do patrono não foi suficiente para o livrar de dois anos de prisão, que acabaram com a sua carreira de naturalista. Ainda no interior de Angola, Bayão foi contemporâneo de outro renomado naturalista, o austríaco Frederico Welwitsch, que em 1858, quando trabalhava num levantamento botânico encomendado pelas autoridades portuguesas, descobriu, no deserto de Namibe, mas para o sul, uma estranha planta carnívora que remonta ao período dos dinossauros, há mais de 70 milhões de anos. Chamou-lhe então Welwitschia Mirabilis... Foi Welwitsch quem desvendou a Francisco Bayão o segredo da negritude das Pedras Negras de Pongo Andongo — onde também havia um Presídio português: deve-se à acção de umas algas filamentosas que crescem nas águas que ficam retidas nas rochas, depois das chuvas! Nesta jornada, também passámos por Pungo Andongo, mas já era noite cerrada e tão escura que os enormes rochedos não passavam de uma sombra negra, cujo contornos parecia tocar as nuvens.
Voltando atrás, a placa que à entrada da vila distribuí o trânsito para a povoação e para as quedas de água ainda deixa perceber o nome Duque de Bragança, apagado pelo tempo mas não esquecido pelo nome adoptado após a independência de Angola: Calandula, ou Kalundula, que é a designação original, em língua nativa, do lugar. Assinale-se ainda que estas são as segundas quedas de água mais altas de todo o continente africano, perdendo por três metros apenas para as Victoria Falls — onde o rio Zambeze se despenha por 108 metros, contra 105 que mede este desnível do rio Lucala, onde as margens se estendem por 410 metros, enquanto as quedas que estabelecem uma fronteira natural entre o Zimbabwé e a Zâmbia se alargam por 1700 metros.
Não tardará muito a que todas estas picadas de terras se transformem em estradas asfaltadas. Quando isso acontecer, a viagem até às quedas de Calandula será ainda mais fácil e rápida, mas o traço negro do alcatrão mudará para sempre a paisagem e retirar-lhe-á algum do encanto actual.
Mais dois passos para a esquerda (a minha, não a da imagem) e já não teria escrito estas histórias, pois só o Super-Homem seria capaz de sobreviver a um mergulho destes. Quem não sofra de vertigens, vale a pena espreitar a queda de água bem de perto e sentir aquela humidade a envolver-nos.
Cerca de uma centena de metros mais abaixo do ponto de queda — 105 metros, para ser mais preciso — as águas do rio Lucala prosseguem pelo vale, abrandando a corrente à medida que se afastam da cascata. Na margem esquerda, o edifício que se vê ao fundo, mesmo sob o arco-irís, é a antiga Pousada, magnífica construção de arquitectura moderna que foi abandonada há mais de três décadas e que, muito provavelmente, um dia acabará por ruir, se não for rapidamente recuperada.
No jardim do hotel em Calandula, as quedas de água não são naturais, mas bastante artísticas: duas mãos que rasgam do solo e seguram cada uma a sua cabaça, que entorna vagarosamente um fio de água para uma pia enorme. Se tivesse chegado mais cedo, tinha-me era entornado na piscina, uns metros mais adiante.
Ainda ia em direcção a N'Dalatando — antiga vila Salazar — quando o sol começou a desaparecer entre o capim, anunciando o final de mais um longo dia por terras de Angola. Até à Fazenda da Cabuta, onde terminei esta jornada, faltavam várias horas de condução, cumpridas pela noite dentro em picadas poeirentas. Bem, não ia numa excursão, mas sim num verdadeiro raide em todo-o-terreno!...