“...Tomar banho de cueca ou nu”
EXPRESSAMENTE PROIBIDO
[Texto e Fotos: Alexandre Correia]
O aviso era bem claro: “Expressamente proibido tomar banho de cueca ou nu”. E acrescentava que “só de fato de banho ou calção”. Quem chega às piscinas de Conda depara com este aviso, cuidadosamente escrito em letras maiúsculas pintadas de branco num painel preto, para que o contraste seja absoluto e a leitura tão fácil que não possa passar despercebida. As piscinas são o orgulho de Conda, uma vila perdida no sul de Angola, não muito longe da cidade de Gabela. Digo piscinas porque há dois “complexos” balneares distintos, cada qual encaixado no seu vale, nos arredores da povoação, onde a água que saí quentíssima das nascentes a meia encosta da serra já chega apenas quente. A primeira vez que passei por lá fui à piscina maior e felizmente que tinha calções de banho comigo, porque consolei-me a banhar-me demoradamente naquela água quente, mais a atirar para o morna, que sabia deliciosamente bem naquela altura, porque o tempo ainda estava fresco. Quando voltei, fui às piscinas mais pequenas e percebi que chamar-lhes piscinas era apenas uma simpatia, talvez para que aquela comunidade não se sentisse inferiorizada perante a grandiosidade das verdadeiras piscinas da freguesia vizinha. Na realidade, não passavam de dois tanques, cheios de água até à altura dos joelhos, mas que, precisamente por serem pequenos, tinham a particularidade de manter a água bem mais quente, a uma temperatura que não chega para arrancar a pele, mas que é um castigo num dia de calor como aquele. Desta vez, felizmente que não tinha os calções de banho à mão, porque assim nem me senti tentado a experimentar o sofrimento de uma santola quando a deitamos viva numa panela cheia de água ao lume. Parece que a pobrezinha ainda sofre um pouco antes de despertar tanta alegria a quem a comer, mas há uns anos um Chef confidenciou-me um truque para minorar este sofrimento. Consiste em fazer exactamente o contrário, ou seja, meter a santola no congelador durante uma meia-hora antes de ir para a panela, porque o frio mata o bicho de uma forma mais suave; não morre cozido, mas morre de frio, literalmente. E mesmo que eu estivesse a morrer de frio, sem os calções de banho juro que não arriscava uma banhoca no tanque. Já lá vai o tempo em que bastava ler o “expressamente proibido” para ficar logo com vontade de quebrar a interdição, como se fosse um desafio. Com o tempo, aprendi que não era. Era meramente desobediência, arrogância, falta de respeito. Não que me tenha tornado um cordeirinho manso, pois há interdições e regras inaceitáveis, que se as respeitarmos é como se assumissemos a sua validade. Agora, não era o caso. Tratava-se meramente de uma regra de costumes. E bastou ter lido o aviso para ficar elucidado e não querer repetir o embaraço que passei três anos antes na ilha de São Tomé, quando fui detido por atentado ao pudor — uma acusação forte, daquelas que ninguém tem orgulho em contar. A minha mãe teria desgosto se soubesse que eu tinha sido detido pela policia, mas não sei se conseguiria resistir ao choque de saber o motivo. Pensei no seu coração fraco e nunca lhe contei. Felizmente que o Chefe Bernardo Ramos — chefe com é, porque este era policia, não chef da cozinha —, a autoridade máxima do posto policial de Neves, no norte de São Tomé, revelou-se um homem compreensivo, mas quando mandou parar o meu jipe numa operação stop à entrada da vila e a primeira coisa que disse, assim que me abordou, foi “Está detido” (a segunda foi “Avance até à esquadra e estacione no quintal da policia”), só pensei que tinha o dia estragado. Claro que não avancei para o quintal da policia sem saber o motivo da detenção. E então é que me convenci que estava em apuros: tinha sido apanhado a conduzir em tronco nu! Um policia ainda meteu a cabeça janela adentro e espreitou-me descaradamente para ver se era só o tronco que estava nu, mas mesmo depois de ter indicado ao Chefe Ramos que eu tinha calções de banho vestidos, não me livrei de seguir para a esquadra. Não fosse eu tentar fugir, o Chefe Ramos mandou dois policias acompanharem-me no caminho, seguindo pendurados nos estribos laterais do meu jipe, enquanto o próprio Chefe vinha atrás, no Land Rover oferecido pela Policia de Segurança Pública portuguesa. Ao ver todo aquele aparato, a população de Neves não resistiu à curiosidade. Quando cheguei à esquadra, no centro da vila, já estava rodeado por uma multidão que, curiosamente, mesmo sem saber o meu crime já reclamava a minha inocência de pedia liberdade. Entrei no portão, arrumei o jipe a um canto do quintal e — sempre escoltado pelos dois policias — fui levado ao gabinete do Chefe, que já me aguardava com um ar grave. Quando lhe vi a expressão do rosto, achei que não me safava sem mais nem menos. Mas depois de lhe estender a mão e de tê-lo cumprimentado pelo seu nome, percebi que a situação não estava fora de controlo. O Chefe Bernardo Ramos, meio intrigado, perguntou-me logo como é que eu sabia o nome dele, mas como pôs ar de quem estava a pensar de onde é que nos conhecíamos, não lhe fiz a desfeita de confessar que simplesmente tinha acabado de o ler na plaquinha azul com letras brancas que tinha presa no bolso da camisa, ambos também provenientes da PSP portuguesa, que devem ter seguido com o Land Rover. Mandou-me logo sentar e começou a explicar-me a gravidade do meu acto, por conduzir em tronco nu. “Ainda se fosse Domingo, dava para para fechar os olhos, porque é feriado, mas nunca a uma quinta-feira”, insistindo que, de acordo com o regulamento, tratava-se de “atentado ao pudor”. Nem mais. Lá lhe expliquei que não Senhor, eu não era desses, de andar por ali a exibir o físico. Claro que não lhe contei que há muitos anos, em Angola, safei-me por uma unha negra de ser vítima de um linchamento popular por, alegadamente, andar a exibir-me para uma funcionária do aeroporto de Namibe, onde eu estava há largas horas a torrar ao sol, esperando pelo avião que me levaria de regresso a Luanda. Estava um calor insuportável e eu tinha acabado de passar por uma das experiências mais aterrorizantes da minha vida, a única em que duvidei seriamente se alguma vez voltaria a casa, mesmo que dentro de um caixão de chumbo com uma etiqueta no pé a dizer o meu nome. E não foi pela fome e sede que passei, porque até sobrevivi aos dois dias e meio de absoluto jejum. Foi por um braço de ferro com um tipo que esperou pacientemente que eu deixasse de ter as “costas quentes” para me dizer que eu era malandro, mas que ele era muito pior e já estava a perder a paciência. Felizmente que antes disso acontecer fui salvo — é a palavra mais acertada para descrever a situação — por dois portugueses que o tinham ouvido, num bar de Namibe, contar aos amigos o que é que me fazia. E não era nada bom! Os meus salvadores ficaram em pânico, mas a única coisa que sabiam de mim era que eu era um jornalista português que andava por ali desgarrado. Procuraram por toda a cidade — nem as casas de putas escaparam à busca — e nada, ninguém tinha visto nenhum português que não fosse conhecido na terra. Às tantas, só lhes restava ir ao aeroporto e pegaram-se numa discussão, porque um insistia em esgotar todas as possibilidades, enquanto o outro contrapunha que não fazia sentido, porque só havia avião dois dias depois e o aeroporto estava fechado; ainda para mais o aeroporto está isolado já no deserto, a alguns quilómetros da cidade. Ganhou o que defendia que devia procurar até ao fim, mas quando os vi chegar ao aeroporto, num velho camião militar, o meu coração disparou. Já era noite, bem tarde e pensei que a minha carreira acabava ali. Na escuridão, nem consegui distinguir mais do que os dois vultos, que antes de se aproximarem perguntaram se eu é que era o jornalista português. Fechei a mão e fui pensando quantos dentes seria capaz de partir ao primeiro que me agarrasse, mas disse que sim. A tensão acabou ali mesmo, porque ficaram eufóricos e levaram-me logo dali, recolhendo-me num hotel de contentores instalado numa ponta da cidade, junto ao mar, que estava ocupado pelas forças da UNAVEM II, a missão das Nações Unidas que nessa altura observava a situação em Angola, vivia-se então a paz podre trazida pelos célebres Acordos de Bicesse, rubricados sob os auspícios de José Manuel Durão Barroso, que então era ainda um mero Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros do Governo português e, provavelmente, nem sonhava sequer que um dia seria Presidente da União Europeia. O milagre seguinte foi arranjarem-me um bife e depois uma cama lavada, para redescobrir esse prazer, bem como o de um duche. O mais incrível deste episódio é que ao conversarmos descobri que um deles era pai de um amigo que tinha em Lisboa! Dois dias depois, no dia do avião, tiveram de deixar-me no aeroporto de manhã cedo, embora o voo só estivesse previsto para meio da tarde. Fiquei ali ao sol e às tantas pus-me em calções. Até que, de repente, uma funcionária começou aos gritos e num instante fiquei rodeado de gente, no centro de um ambiente ameaçador. Só então percebi que a gritaria tinha a ver comigo e que estava a ser acusado de andar ali a exibir-me para a Senhora. Fiquei horrorizado. Duplamente horrorizado, porque para além da situação estar quase incontrolável, juro que nunca na minha vida serei capaz de assediar uma mulher como aquela. Nem que quisesse castigar-me rudemente escolheria uma punição como ela. Seria demasiado atroz. Mas não quis ferir o orgulho à Senhora e perante a acusação, decidi retractar-me, pedindo-lhe desculpa publicamente e, claro, voltando a vestir-me. Fui tão convincente a justificar-me e a pedir desculpa que imediatamente senti o perdão popular e de nada serviu à minha agressora — tive pesadelos com ela durante muito tempo — continuar a reclamar que eu devia ser castigado. Eu é que me fartei de pensar como é que a castigava e foi um exercício tão violento que nunca hei-de contar o que me passou pela cabeça. Em São Tomé, na esquadra de Neves, este filme surreal passou-me todo pela cabeça enquanto o Chefe Ramos expunha os motivos da minha detenção. Bem, pelo menos desta vez o atentado ao pudor não metia assédio. E expliquei-lhe que tinha acabado de sair da Praia das Conchas, ainda vinha a escorrer água pelo corpo e como me dirigia para outra praia mais adiante, inocentemente achei que ninguém repararia que ia de peito ao léu. Como a minha mãe sempre me ensinou, valeu a pena dizer a verdade, porque o Chefe Bernardo Ramos aceitou a explicação e decidiu ser benevolente face a uma confissão tão expontânea e sincera. Foi então que desatámos na conversa e não tardou a que nos ficassemos a conhecer como velhos amigos. Quando saí da esquadra, gentilmente acompanhado pelo Chefe, tinha a certeza que da próxima vez que nos encontrarmos nem ele vai interrogar-se de onde é que nos conhecemos, nem eu precisarei de ler a plaquinha para saber o seu nome. Já éramos amigos e pronto. Os meus companheiros, mais respeitadores dos bons costumes, porque tinham vestido t-shirts, esperaram nervosissímos à porta e nem dizendo a verdade os convenci que não tive de pagar nada ao Chefe para ser solto. É irónico como grande parte das pessoas critica tão violentamente a corrupção, mas quando se vêm numa situação desconfortável, nomeadamente perante autoridades, são os primeiros a tomar a iniciativa de negociar uma saída airosa. Nessas alturas, que se lixe a justiça e se têm razão. Interessa é salvar a pele e oferecem logo uma recompensa para garantir isso. E depois de safos, são os primeiros a acusar, a denunciar que a única justiça que funciona é a do suborno. Esta cultura está tão enraízada que o impresso da declaração de imposto sobre o rendimento, vulgo IRS, tem até uma alínea para os contribuintes declararem “luvas, gratificações, etc...”. Sempre me interroguei se alguma vez as Finanças registaram uma declaração, ao menos uma só, que indicasse uma verba nesta alínea, como se fosse normal “receber dinheiro por fora”. Até é, mas disso também toda a gente se esquece, a menos que seja para acusar os outros. Naquela meia-hora que passei fechado no gabinete do Chefe da esquadra só falámos. De justiça, do tempo incerto, que ora abria o sol, ora parecia que o céu ia desabar-nos na cabeça, da fábrica de cerveja quase em frente, que uns espanhóis tinham comprado pouco tempo antes, e das bebedeiras que os homens de São Tomé apanham tão frequentemente, sobretudo depois da hora do almoço, nas povoações mais longe da cidade. Mais com Vinho de Palma, que basta fazer sangrar uma palmeira e depois deixar fermentar essa seiva até ficar docinha, do que com cerveja, que tem de pagar-se e nem toda a gente tem dinheiro para isso. Não foi preciso muito tempo para o Chefe admitir que havia coisas bem mais graves do que andar a guiar de tronco nu e todo molhado. Só lhe dei dois apertos de mão. Mais vigoroso o da despedida. E fi-lo compreender a insensatez da acusação que pendia sobre mim. Felizmente, o Chefe Bernardo Ramos era compreensivo. Como compreensivos foram os policias de Conda, que nos abriram caminho até às piscinas e fizeram vista grossa à interdição de tomar banho de cueca, porque foi mesmo assim que um dos meus companheiros desta viagem entrou para dentro do tanque...
EXPRESSAMENTE PROIBIDO
[Texto e Fotos: Alexandre Correia]
O aviso era bem claro: “Expressamente proibido tomar banho de cueca ou nu”. E acrescentava que “só de fato de banho ou calção”. Quem chega às piscinas de Conda depara com este aviso, cuidadosamente escrito em letras maiúsculas pintadas de branco num painel preto, para que o contraste seja absoluto e a leitura tão fácil que não possa passar despercebida. As piscinas são o orgulho de Conda, uma vila perdida no sul de Angola, não muito longe da cidade de Gabela. Digo piscinas porque há dois “complexos” balneares distintos, cada qual encaixado no seu vale, nos arredores da povoação, onde a água que saí quentíssima das nascentes a meia encosta da serra já chega apenas quente. A primeira vez que passei por lá fui à piscina maior e felizmente que tinha calções de banho comigo, porque consolei-me a banhar-me demoradamente naquela água quente, mais a atirar para o morna, que sabia deliciosamente bem naquela altura, porque o tempo ainda estava fresco. Quando voltei, fui às piscinas mais pequenas e percebi que chamar-lhes piscinas era apenas uma simpatia, talvez para que aquela comunidade não se sentisse inferiorizada perante a grandiosidade das verdadeiras piscinas da freguesia vizinha. Na realidade, não passavam de dois tanques, cheios de água até à altura dos joelhos, mas que, precisamente por serem pequenos, tinham a particularidade de manter a água bem mais quente, a uma temperatura que não chega para arrancar a pele, mas que é um castigo num dia de calor como aquele. Desta vez, felizmente que não tinha os calções de banho à mão, porque assim nem me senti tentado a experimentar o sofrimento de uma santola quando a deitamos viva numa panela cheia de água ao lume. Parece que a pobrezinha ainda sofre um pouco antes de despertar tanta alegria a quem a comer, mas há uns anos um Chef confidenciou-me um truque para minorar este sofrimento. Consiste em fazer exactamente o contrário, ou seja, meter a santola no congelador durante uma meia-hora antes de ir para a panela, porque o frio mata o bicho de uma forma mais suave; não morre cozido, mas morre de frio, literalmente. E mesmo que eu estivesse a morrer de frio, sem os calções de banho juro que não arriscava uma banhoca no tanque. Já lá vai o tempo em que bastava ler o “expressamente proibido” para ficar logo com vontade de quebrar a interdição, como se fosse um desafio. Com o tempo, aprendi que não era. Era meramente desobediência, arrogância, falta de respeito. Não que me tenha tornado um cordeirinho manso, pois há interdições e regras inaceitáveis, que se as respeitarmos é como se assumissemos a sua validade. Agora, não era o caso. Tratava-se meramente de uma regra de costumes. E bastou ter lido o aviso para ficar elucidado e não querer repetir o embaraço que passei três anos antes na ilha de São Tomé, quando fui detido por atentado ao pudor — uma acusação forte, daquelas que ninguém tem orgulho em contar. A minha mãe teria desgosto se soubesse que eu tinha sido detido pela policia, mas não sei se conseguiria resistir ao choque de saber o motivo. Pensei no seu coração fraco e nunca lhe contei. Felizmente que o Chefe Bernardo Ramos — chefe com é, porque este era policia, não chef da cozinha —, a autoridade máxima do posto policial de Neves, no norte de São Tomé, revelou-se um homem compreensivo, mas quando mandou parar o meu jipe numa operação stop à entrada da vila e a primeira coisa que disse, assim que me abordou, foi “Está detido” (a segunda foi “Avance até à esquadra e estacione no quintal da policia”), só pensei que tinha o dia estragado. Claro que não avancei para o quintal da policia sem saber o motivo da detenção. E então é que me convenci que estava em apuros: tinha sido apanhado a conduzir em tronco nu! Um policia ainda meteu a cabeça janela adentro e espreitou-me descaradamente para ver se era só o tronco que estava nu, mas mesmo depois de ter indicado ao Chefe Ramos que eu tinha calções de banho vestidos, não me livrei de seguir para a esquadra. Não fosse eu tentar fugir, o Chefe Ramos mandou dois policias acompanharem-me no caminho, seguindo pendurados nos estribos laterais do meu jipe, enquanto o próprio Chefe vinha atrás, no Land Rover oferecido pela Policia de Segurança Pública portuguesa. Ao ver todo aquele aparato, a população de Neves não resistiu à curiosidade. Quando cheguei à esquadra, no centro da vila, já estava rodeado por uma multidão que, curiosamente, mesmo sem saber o meu crime já reclamava a minha inocência de pedia liberdade. Entrei no portão, arrumei o jipe a um canto do quintal e — sempre escoltado pelos dois policias — fui levado ao gabinete do Chefe, que já me aguardava com um ar grave. Quando lhe vi a expressão do rosto, achei que não me safava sem mais nem menos. Mas depois de lhe estender a mão e de tê-lo cumprimentado pelo seu nome, percebi que a situação não estava fora de controlo. O Chefe Bernardo Ramos, meio intrigado, perguntou-me logo como é que eu sabia o nome dele, mas como pôs ar de quem estava a pensar de onde é que nos conhecíamos, não lhe fiz a desfeita de confessar que simplesmente tinha acabado de o ler na plaquinha azul com letras brancas que tinha presa no bolso da camisa, ambos também provenientes da PSP portuguesa, que devem ter seguido com o Land Rover. Mandou-me logo sentar e começou a explicar-me a gravidade do meu acto, por conduzir em tronco nu. “Ainda se fosse Domingo, dava para para fechar os olhos, porque é feriado, mas nunca a uma quinta-feira”, insistindo que, de acordo com o regulamento, tratava-se de “atentado ao pudor”. Nem mais. Lá lhe expliquei que não Senhor, eu não era desses, de andar por ali a exibir o físico. Claro que não lhe contei que há muitos anos, em Angola, safei-me por uma unha negra de ser vítima de um linchamento popular por, alegadamente, andar a exibir-me para uma funcionária do aeroporto de Namibe, onde eu estava há largas horas a torrar ao sol, esperando pelo avião que me levaria de regresso a Luanda. Estava um calor insuportável e eu tinha acabado de passar por uma das experiências mais aterrorizantes da minha vida, a única em que duvidei seriamente se alguma vez voltaria a casa, mesmo que dentro de um caixão de chumbo com uma etiqueta no pé a dizer o meu nome. E não foi pela fome e sede que passei, porque até sobrevivi aos dois dias e meio de absoluto jejum. Foi por um braço de ferro com um tipo que esperou pacientemente que eu deixasse de ter as “costas quentes” para me dizer que eu era malandro, mas que ele era muito pior e já estava a perder a paciência. Felizmente que antes disso acontecer fui salvo — é a palavra mais acertada para descrever a situação — por dois portugueses que o tinham ouvido, num bar de Namibe, contar aos amigos o que é que me fazia. E não era nada bom! Os meus salvadores ficaram em pânico, mas a única coisa que sabiam de mim era que eu era um jornalista português que andava por ali desgarrado. Procuraram por toda a cidade — nem as casas de putas escaparam à busca — e nada, ninguém tinha visto nenhum português que não fosse conhecido na terra. Às tantas, só lhes restava ir ao aeroporto e pegaram-se numa discussão, porque um insistia em esgotar todas as possibilidades, enquanto o outro contrapunha que não fazia sentido, porque só havia avião dois dias depois e o aeroporto estava fechado; ainda para mais o aeroporto está isolado já no deserto, a alguns quilómetros da cidade. Ganhou o que defendia que devia procurar até ao fim, mas quando os vi chegar ao aeroporto, num velho camião militar, o meu coração disparou. Já era noite, bem tarde e pensei que a minha carreira acabava ali. Na escuridão, nem consegui distinguir mais do que os dois vultos, que antes de se aproximarem perguntaram se eu é que era o jornalista português. Fechei a mão e fui pensando quantos dentes seria capaz de partir ao primeiro que me agarrasse, mas disse que sim. A tensão acabou ali mesmo, porque ficaram eufóricos e levaram-me logo dali, recolhendo-me num hotel de contentores instalado numa ponta da cidade, junto ao mar, que estava ocupado pelas forças da UNAVEM II, a missão das Nações Unidas que nessa altura observava a situação em Angola, vivia-se então a paz podre trazida pelos célebres Acordos de Bicesse, rubricados sob os auspícios de José Manuel Durão Barroso, que então era ainda um mero Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros do Governo português e, provavelmente, nem sonhava sequer que um dia seria Presidente da União Europeia. O milagre seguinte foi arranjarem-me um bife e depois uma cama lavada, para redescobrir esse prazer, bem como o de um duche. O mais incrível deste episódio é que ao conversarmos descobri que um deles era pai de um amigo que tinha em Lisboa! Dois dias depois, no dia do avião, tiveram de deixar-me no aeroporto de manhã cedo, embora o voo só estivesse previsto para meio da tarde. Fiquei ali ao sol e às tantas pus-me em calções. Até que, de repente, uma funcionária começou aos gritos e num instante fiquei rodeado de gente, no centro de um ambiente ameaçador. Só então percebi que a gritaria tinha a ver comigo e que estava a ser acusado de andar ali a exibir-me para a Senhora. Fiquei horrorizado. Duplamente horrorizado, porque para além da situação estar quase incontrolável, juro que nunca na minha vida serei capaz de assediar uma mulher como aquela. Nem que quisesse castigar-me rudemente escolheria uma punição como ela. Seria demasiado atroz. Mas não quis ferir o orgulho à Senhora e perante a acusação, decidi retractar-me, pedindo-lhe desculpa publicamente e, claro, voltando a vestir-me. Fui tão convincente a justificar-me e a pedir desculpa que imediatamente senti o perdão popular e de nada serviu à minha agressora — tive pesadelos com ela durante muito tempo — continuar a reclamar que eu devia ser castigado. Eu é que me fartei de pensar como é que a castigava e foi um exercício tão violento que nunca hei-de contar o que me passou pela cabeça. Em São Tomé, na esquadra de Neves, este filme surreal passou-me todo pela cabeça enquanto o Chefe Ramos expunha os motivos da minha detenção. Bem, pelo menos desta vez o atentado ao pudor não metia assédio. E expliquei-lhe que tinha acabado de sair da Praia das Conchas, ainda vinha a escorrer água pelo corpo e como me dirigia para outra praia mais adiante, inocentemente achei que ninguém repararia que ia de peito ao léu. Como a minha mãe sempre me ensinou, valeu a pena dizer a verdade, porque o Chefe Bernardo Ramos aceitou a explicação e decidiu ser benevolente face a uma confissão tão expontânea e sincera. Foi então que desatámos na conversa e não tardou a que nos ficassemos a conhecer como velhos amigos. Quando saí da esquadra, gentilmente acompanhado pelo Chefe, tinha a certeza que da próxima vez que nos encontrarmos nem ele vai interrogar-se de onde é que nos conhecemos, nem eu precisarei de ler a plaquinha para saber o seu nome. Já éramos amigos e pronto. Os meus companheiros, mais respeitadores dos bons costumes, porque tinham vestido t-shirts, esperaram nervosissímos à porta e nem dizendo a verdade os convenci que não tive de pagar nada ao Chefe para ser solto. É irónico como grande parte das pessoas critica tão violentamente a corrupção, mas quando se vêm numa situação desconfortável, nomeadamente perante autoridades, são os primeiros a tomar a iniciativa de negociar uma saída airosa. Nessas alturas, que se lixe a justiça e se têm razão. Interessa é salvar a pele e oferecem logo uma recompensa para garantir isso. E depois de safos, são os primeiros a acusar, a denunciar que a única justiça que funciona é a do suborno. Esta cultura está tão enraízada que o impresso da declaração de imposto sobre o rendimento, vulgo IRS, tem até uma alínea para os contribuintes declararem “luvas, gratificações, etc...”. Sempre me interroguei se alguma vez as Finanças registaram uma declaração, ao menos uma só, que indicasse uma verba nesta alínea, como se fosse normal “receber dinheiro por fora”. Até é, mas disso também toda a gente se esquece, a menos que seja para acusar os outros. Naquela meia-hora que passei fechado no gabinete do Chefe da esquadra só falámos. De justiça, do tempo incerto, que ora abria o sol, ora parecia que o céu ia desabar-nos na cabeça, da fábrica de cerveja quase em frente, que uns espanhóis tinham comprado pouco tempo antes, e das bebedeiras que os homens de São Tomé apanham tão frequentemente, sobretudo depois da hora do almoço, nas povoações mais longe da cidade. Mais com Vinho de Palma, que basta fazer sangrar uma palmeira e depois deixar fermentar essa seiva até ficar docinha, do que com cerveja, que tem de pagar-se e nem toda a gente tem dinheiro para isso. Não foi preciso muito tempo para o Chefe admitir que havia coisas bem mais graves do que andar a guiar de tronco nu e todo molhado. Só lhe dei dois apertos de mão. Mais vigoroso o da despedida. E fi-lo compreender a insensatez da acusação que pendia sobre mim. Felizmente, o Chefe Bernardo Ramos era compreensivo. Como compreensivos foram os policias de Conda, que nos abriram caminho até às piscinas e fizeram vista grossa à interdição de tomar banho de cueca, porque foi mesmo assim que um dos meus companheiros desta viagem entrou para dentro do tanque...
Como o sol estava quente, os policias recolheram-se na sombra e "não repararam" no banhista que violou o regulamento e meteu-se dentro de água... em cuecas. Bem, sempre não estava nu, que isso devia ser mais difícil de não reparar...
Muito, mas mesmo muito bom!
ResponderEliminarOlá Afonso,
ResponderEliminarÉ muito simpático ler comentários destes. Obrigado! Significa que leu e gostou. Já tenho repetido aqui que este é um blog diferente. Aqui conto longas histórias, daquelas que dispensam as imagens. Precisamente para que cada um possa deixar-se viajar pela sua imaginação e criar as suas próprias imagens. São também histórias verdadeiras, vividas na primeira pessoa, que reflectem uma vida já muito bem preenchida. Alguns destes textos, em breve poderá voltar a lê-los sem precisar do computador. Nessa altura, acredito que terá ainda maior prazer em relê-los.
Um abraço,
Alexandre Correia
PS - Não voltei a passar por situações como as que conto nesta história. Entretanto, aprendi muito mais...
Oh Alexandre, metes-te em cada uma...
ResponderEliminarMas é giro, agora com a distância relembrares este episódios. Eu faço idéia de quantos e quantos mais tens na tua memória.
Vai contando que nós adoramos saber
bjs Lena
Olá Alexandre,
ResponderEliminarDesfrutei imenso esta sua história. Que aventuras! Chega a tirar-nos o fôlego ao imaginar o possível linchamento pela acusação de exibir-se e assediar a “funcionária-pesadelo” do aeroporto de Namibe; o seu resgate graças à persistência de um homem que insistiu ir até ao aeroporto procurá-lo… Mas é bom saber que escapou ileso dessa detenção (e das demais situações complicadas que descreveu), e que o acharam merecedor de uma absolvição. Mas como se lhe ocorreu andar de tronco nu numa quinta-feira? Se fosse domingo… Hilariante!
Um abraço,
Silvia
PS. Boa dica desse Chef! Adoro santolas e dizem que as preparo muito bem. Para quê fazer sofrer os pobres animais com esse “mergulho infernal” quando podem ter uma viagem bem mais tranquila? ;)
Olá Lena,
ResponderEliminarÉ bom começar a escrever estas histórias, não vá um dia bloquear-me a memória e a perda seria irreparável!
Um beijo,
Alex
Olá SM,
ResponderEliminarDevo dizer-lhe que fui muito, mas mesmo muito simpático a descrever a funcionária do aeroporto. Mas não exagerei quando digo que ela povoou os meus pesadelos durante algum tempo. E agora, ao responder-lhe, ocorreu-me um terceiro episódio de costumes — porque não há duas sem três... — este passado aqui em Lisboa, mesmo à porta do Cemitério dos Prazeres, numa noite de inspiração. Mas isso são outras histórias...
Um beijo,
Alex
PS - Tire lá a santola do congelador e arranje mas é um lavagante, que eu até me ofereço para lho cozinhar com uns tagliatelli. Até já me está a dar fome...
olá alex,
ResponderEliminaradorei a estória. divinal! afinal não sou a única a meter-me em apuros ;)
aconteceu-me algo semelhante há alguns anos atrás - num quente verão em veneza (estavam cerca de 40°C), decidi desapertar o meu vestido e usá-lo como saia, ficando com a parte de cima tapada pelo meu bikini. erro crasso. numa cidade turística mas extremamente religiosa, fui quase linchada por populares e outros turistas. fui obrigada a "revestir-me" e assar durante o resto do dia.
felizmente os suíços de basiléia são muito mais relaxados e menos púdicos. aliás o rio reno e as suas margens são usadas como praias - existe o culto de descer o rio levado pela corrente (vai ser o meu baptizado na próxima semana se o tempo o permitir) - e é ver as pessoas passearem-se nas ruas de fato de banho. e não há maldade se não houver maldade na pessoa que o faz...
outra curiosidade é que muitos banhos aqui na suíça autorizam o naturismo (aliás é regra nuns banhos turcos aqui perto de basiléia).
para o alex e a sm:
ResponderEliminarse eu preparar a sobremesa, também tenho direito ao lavagante com tagliatelli?
:)
Olá Li,
ResponderEliminarCom certeza que sim, mesmo que não traga sobremesa nenhuma! Bem, mas já que ofereceu, esmere-se a pensar numa porque — vou confessar-lhe, a cozinha é uma das minhas paixões e sou muito exigente. A regra é: se é para engordar, só vale a pena se for muito bom!
Imagino o que sofreu em Veneza. É curioso que já lá estive tantas vezes e nunca em ambiente de "lua de mel", como a maioria das pessoas desejaria estar naquela cidade. Às vezes são essas ideias que trazem as grandes decepções da vida. Coitados daqueles que pensam que os lugares são mágicos. Não, se não tivermos nós próprios uma boa dose de magia, não há lugar que nos encante suficientemente.
Descer o Reno na corrente não me convence, mas se quiser trocar a sobremesa por uma entrada nos banhos turcos, é só marcar. Gosto tanto de água... que até a bebo!
Um beijo,
Alex
PS - Mas também bebo vinho, tinto, branco, rosé e espumante bruto. Verde, deixe que lhe diga: é a cor das garrafas.
Li, e a minha santola?! Ficou no esquecimento…Foi completamente abafada pela lavagante com tagliatelli do Alexandre. Ok, ok… Sobremesa que seja light, porque depois de uma excelente entrada de santola e um “main course” de lavagante com tagliatelli, já não sei bem o que poderá entrar mais...
ResponderEliminarAlexandre, verde é a cor das garrafas?!...Faltava dizer o que o meu pai diz sobre a água: “que é para lavar roupa”! :)
Bom, sugiro que cada um leve as suas bebidas :P
Beijinhos,
Silvia
Olá SM,
ResponderEliminarTal como o espumante, se for bom, claro, ou o champagne, cuja denominação de origem impõe também uma boa garantia de qualidade, a água também é uma bebida que acompanha bem tudo e nada. É verdade que tem a vantagem adicional de nos permitir lavar roupa e é insubstituível, apesar de um risotto — arroz de grão gordo particularmente usado em Itália, para os não entendidos... — fica bem melhor se em vez de usarmos água para o cozer, usarmos... champagne. Voilá!
Beijo,
Alex
PS - Já agora, completo-lhe a piada, mesmo que não a subscreva inteiramente: tinto é vinho, branco é refresco e verde é a cor das garrafas!
Divertidos os comentários e as tuas respostas... As tuas aventuras por terras africanas... adoro e espero mais. Bjks
ResponderEliminarOlá São,
ResponderEliminarTem razão, isto até parece um fórum. Mas tem uma coisa que o diferencia da generalidade dos fóruns: nunca houve comentários feios, desagradáveis, como vejo (bem, na verdade, não os consigo sequer ver...) noutros sítios. E, de resto, da mesma forma que aprecio muito saber como os meus leitores vêm o trabalho que tenho vindo a fazer, também acho muito importante transmitir-lhes isso. E responder a cada comentário é o mínimo que posso fazer.
Um beijo,
Alex
PS - Mantenha-se ligada, porque as histórias são inesgotáveis. Mas isso, a São já sabe há muito tempo...
Adoro ler sobre suas aventuras rs. Fico me imaginando dentro delas.
ResponderEliminarBeijo grande pra ti!
Olá Samanta,
ResponderEliminarPois o prazer da leitura é recíproco. Tenho lido algumas matérias suas muito interessantes.
Beijo também para si,
Alex
Imperdivel este blogue!!! Texto impecável, caro Alexandre.
ResponderEliminarKandandu
Olá Namibiano,
ResponderEliminarAinda bem que assim o considera. Mentia-lhe se dissesse que não tenho noção disso. Claro que tenho e este trabalho reflecte o que tem sido sempre a minha regra ao longo da vida: fazer o melhor que puder.
Kandandu,
Alex
santola?! lavagante?! meu Deus, eu não sei o que é isto, mas também quero experimentar! Posso lavar a louça??
ResponderEliminarAlex, belo conto, de tirar o fôlego.
beijoca!
Olá Gui,
ResponderEliminarDeixe lá a louça que eu também trato disso. Já sabe que é sempre convidada. E não perca o fôlego, que vêm aí mais histórias!...
Beijo,
Alex
PS - Para além de gostar de cozinhar, faço-o mantendo sempre a cozinha impecável. Basta seguir a regra: sujou, lavou. Quando tudo está pronto para comer, não há nada para lavar...
Eheheh, bela placa.
ResponderEliminarObrigado Alexandre pelo teu comentário. :)
Abraço.
Olá Gimbras,
ResponderEliminarTenho encontrado placas pelo mundo fora que dariam um livro de fotografia hilariante. E neste aspecto, é em África que se encontram as mais interessantes, as mais inocentes, as mais divertidas e até as melhor desenhadas. Para já não falar do vocabulário empregue, que adianta-se a todo e qualquer acordo ortográfico. Mas não nos podemos rir muito, porque em Portugal também há demasiados portugueses que não sabem português! E a propósito do comentário no seu blog ao acidente ocorrido com o avião, dominar a lingua inglesa, que é a lingua universal na aviação civil internacional, é a principal barreira na aprendizagem dos pilotos, sobretudo oriundos de países com níveis de instrução e escolaridade pouco exigentes, onde as passagens de ano são quase que um formalismo administrativo, onde não interessa a avaliação do aproveitamento do aluno. Não estou a referir-me a Portugal, mas podia.
Um abraço,
Alexandre Correia
Chamam piscina àquilo??? Na minha terra é um tanque, a minha avó lavava roupa numa coisa daquelas!
ResponderEliminarCaro Anónimo,
ResponderEliminarBem, o mínimo que posso dizer é que a sua avó tinha muita roupa para lavar! Mas não se iluda, que, de facto, as imagens exibidas no blog são de dois tanques. A piscina, a verdadeira piscina, alimentada naturalmente por água bastante quente, é enorme. Daí ser uma atracção turística...
Cumprimentos,
Alexandre Correia
PS - As minhas avós tinham mais sorte que a sua. Lavavam a roupa numa máquina. E, coitadas, isso já foi há muitos anos...