A espera interminável pela chegada de...
A COMITIVA
[Texto e Fotos: Alexandre Correia]
Mergulhado numa densa nuvem de pó, que dava uma imagem difusa da paisagem e, pior do que isso, escondia os buracos do caminho, guiava há mais de uma hora pela picada quando reparei que desde que saíra do asfalto, na cidade de Gabela, ainda só tinha avançado cerca de 15 quilómetros. Ao ritmo a que a caravana seguia, seria impossível chegarmos a Quilenda à hora prevista. Desta vez, porém, ninguém tinha culpa do atraso. Ou todos tinhamos, simplesmente porque à hora do almoço a fome pesou mais do que horário programado. O almoço, numa churrasqueira à entrada de Gabela, embora tivesse sido encomendado com semanas de antecedência e sucessivamente confirmado nos dias anteriores, parecia ter sido improvisado no momento em que o restaurante foi invadido por mais de quatro dezenas de pessoas — os participantes no 4º Raid T.T. Kwanza Sul — que traziam fome a dobrar e encontraram comida para apenas metade. Ficou logo bem claro que ninguém saíria dali sem ter comido a refeição a que tinha direito, mas nem os relógios páram nem os frangos assam instantaneamente, pelo que a hora e meia desta paragem foi escandalosamente ultrapassada. Quando eu finalmente me pude servir, já uma boa parte dos meus companheiros estavam a postos para seguir viagem, mas a espera pelos mais atrasados — e talvez também a falta de um café — como que lhes provocou uma suave sonolência, tornada ainda mais agradável pelo calor do sol. Isso permitiu-me ter sido um dos últimos a chegar ao restaurante e o primeiro a partir, adiantando-me para tentar ganhar o tempo suficiente para conseguir parar na esplanada do centro da cidade, tomar um café expresso e voltar a partir devidamente colocado na cauda da caravana, sem que alguém desse pela minha falta e fizesse deter a marcha, como seria suposto que aconteceria até me encontrarem. O plano era perfeito, mas não contava com as obras de renovação dos espaços públicos da cidade, cujos trabalhos tinham precisamente acabado de chegar ao jardim da praça central, que foi isolado por tapumes e obrigou ao encerramento temporário da esplanada e do bar. Era irónico não conseguir tomar um café numa terra toda ela rodeada por abundantes cafezais, mas foi isso que aconteceu. E graças a este plano frustrado, acabei por ser um dos primeiros a avançar para a picada que liga Gabela a Quilenda, provavelmente um dos caminhos de terra com mais buracos por quilómetro entre todos os que já percorri em inúmeras destas aventuras. Só a Nissan Hardbody do líder da expedição seguia à frente da minha, pelo que não era por falta de habilidade ao volante nem de experiência em todo-o-terreno que não íamos mais depressa; era porque não dava mesmo para ir mais depressa. A visita a esta vila, perdida a meio caminho entre Gabela e Porto Amboim, não era uma visita qualquer e sabíamos que estava à nossa espera uma multidão, encabeçada por todas as autoridades e as chamadas “forças vivas” da terra. Até tinha vindo gente das aldeias vizinhas só para receber e aplaudir a comitiva, como diziam entre si. O encontro entre uns e outros estava previsto ter lugar na rua principal, onde fica a velha escola primária — numa das esquinas —, o jardim público com a sede do Clube local, mesmo ao lado, o edifício da sede do município, em frente, e a igreja, na ponta oposta, diante do jardim. Quilenda era o único município da provincia do Kwanza Sul que nunca tinha testemunhado a passagem da caravana desta expedição. E por um triz a visita não foi adiada, pois duas semanas antes de termos saído de Luanda a estrada estava intransitável, arrasada pelas chuvas. Reabriu ao trânsito apenas uns dias antes e somente no troço entre Gabela e Quilenda. E como a ideia era que a caravana daí seguisse até Porto Amboim, para depois descer a estrada costeira até Sumbe, onde nessa noite — com o tradicional banquete oferecido pelo Governador do Kwanza Sul — terminava a quarta edição do raide, ainda se pensou deixar isso para outra oportunidade. Porém, adiar a visita seria frustrar as expectativas daqueles que nos esperavam há quatro anos. E compreendi isso perfeitamente quando lá cheguei... Assim que as duas primeiras pickups entraram em Quilenda, passando defronte do posto da policia, à entrada de uma rua que se alarga e é divida ao centro por um canteiro com árvores — seguindo uma disposição típica do período colonial — imediatamente percebi a agitação. Um bando de rapazes desatou a correr rua acima, em direcção ao centro, anunciando a toda a gente que “a comitiva está a chegar”. Bastou segui-los para perceber onde é que tinha de ir: até ao cimo da rua, a uma rotunda delimitada por pedras que não escondiam ter sido caiadas de branco há muito pouco tempo — como aliás as pedras que contornavam todos os canteiros no meio das ruas. Parecia que estava ali a população toda, dividida em três grupos bem distintos. Os membros da administração do munícipio e as individualidades importantes da vila, desde o padre aos professores, passando pelo chefe da policia, aguardavam-nos no cimo das escadas de acesso às instalações da autarquia; em baixo, junto ao muro, estavam os representantes do poder tradicional, os sobas, à vontade uma trintena deles, todos vestidos com uma farda de cor de areia e alinhados como se estivessem numa formatura militar. E até parecia que estavam. Em frente destes dois grupos, bem no meio da rua, estava o povo todo. Muita gente mesmo. Mais mulheres do que homens, imensas com bebés presos às costas, amarrados com capulanas coloridas, e bastantes crianças, que transbordavam de curiosidade e de excitação. E até denunciavam algum medo. Grande parte desta gente não tinha memória de alguma vez uma comitiva assim ter visitado Quilenda. E o orgulho das autoridades não podia ser maior, pois consideravam a nossa visita como uma “comitiva oficial”, ou não se tratasse de um raide promovido sob a égide de duas entidades oficiais — o Governo da Província do Kwanza Sul e a Câmara Municipal de Almada. Foi nessa altura que senti como era realmente importante para aquele gente receber-nos na sua terra perdida. O que para nós era um frete, uma deslocação que ninguém tinha começado com ânimo, mas sim pela obrigação de cumprir com o programa — pois o cansaço de longos dias a percorrer picadas esburacadas e poeirentas já era forte —, era encarado de modo completamente diferente por quem nos aguardava; era motivo de enorme orgulho, para além de uma grande excitação. Quando chegámos, vi expressões de contentamento nos olhares daquela gente toda. E logo esqueci o sacrifício que tinha sido percorrer aquela picada. Um sacrifício que, diga-se de passagem, ainda iria repetir quando terminassemos a visita. Mas aqueles sorrisos, o sentir que era assim tão importante termos ido lá, superou isso tudo. O frete deu lugar ao prazer de termos conseguido corresponder às expectativas. E uma das coisas boas da vida é conseguirmos isso: corresponder às expectativas. Antes de mais, às nossas. Mas também às de quem, como naquele dia sucedeu com o povo e as autoridades de Quilenda, se mobiliza por nós. Quantas vezes não nos acontece passarmos por isso com uma absoluta indiferença? Provavelmente, todos nós já provocámos decepções dessas. Neste caso, felizmente que fomos ao encontro dessas expectativas, pois a avaliar pela festa que estava preparada em nossa honra, se não aparecessemos teríamos ferido o orgulho daquela gente. Assim que estacionei, depois de descrever a rotunda, começaram logo a ouvir-se os batuques, sinal para o povo arrancar a festa. Esperavam dúzia e meia de pickups, com mais de quarenta pessoas, e apareceram só duas, com dois pares de ocupantes. Como não vinham mais carros atrás, a festa interrompeu-se. A nossa chegada era um falso alarme. A comitiva ainda vinha a caminho. Vinha sim e demorou uma boa meia hora, em que até nós os quatro ficámos impacientes — interrogando-nos se tinha acontecido alguma coisa ao grosso da coluna — quanto mais aquele povo todo, que já ali estava há umas horas... O pó, aquele maldito pó, era o culpado de tamanho atraso. O pó e os buracos infernais. As pickups chegaram em grupos de duas ou três, com alguns minutos de intervalo entre si, que eram o tempo necessário para deixar assentar a poeira. A tarde estava mesmo no final quando a festa recomeçou, repetindo um ritual que já era familiar aos veteranos desta expedição: intermináveis apresentações de cumprimentos, alguns discursos de boas vindas e de agradecimento pela vinda de uma comitiva, uma festa popular com música e danças, e outra festa, mais resguardada de olhares públicos, só para os membros da comitiva e para os anfitriões. Esta última, como normalmente, metia comes e bebes. Afinal, as boas celebrações têm lugar à mesa. Em 2005, no decurso do primeiro destes raides por Angola, quando chegámos à vila de Seles descobrimos que tinham organizado não um, mas sim dois jantares em nossa honra. E como não podíamos fazer a desfeita aos que nos convidavam, tivémos de ter estômago para comparecer aos dois repastos. Foi uma barrigada de galinha de cabidela e caldeirada de cabrito — logo por azar as ementas foram quase idênticas... — mas ninguém ficou ofendido, nem deu pela duplicidade de jantares. E para nós, foi como se tivessemos feito um intervalo entre o primeiro e o segundo pratos. Agora, porém, era diferente. Tinham preparado um lanche na residência da administradora de Quilenda e apesar do nosso atraso nos recomendar que partissemos quanto antes, repetindo o percurso até Gabela, não houve coragem para recusar o convite, tal era a satisfação por finalmente termos ido a esta vila. E como as palavras são como as cerejas — atrás de uma vem sempre outra... — o que tinhamos discretamente combinado que seria uma visita de médico, só o tempo necessário para corresponder ao formalismo da visita, acabou por tornar-se num encontro descontraído e demorado. Só nos apercebemos que as horas continuavam a passar quando começou a escurecer. Ao desperdirmo-nos, explicando a urgência de regressarmos à cidade de Sumbe, para o banquete com o Governador, o chefe da policia de Quilenda quis ser prestativo e imediatamente requisitou uma escolta para nos acompanhar até Gabela. Esqueceu-se foi de dar indicações ao motorista do jipe da policia para ir tão depressa quanto pudesse. E como não o fez, o condutor decidiu converter a sua missão num vagoroso desfile através da picada, rolando devagar, parando para passar cuidadosamente nos buracos mais fundos, abrandando ainda mais à passagem pelas localidades. Mais deseperante não podia ter sido. Ninguém tinha coragem de ultrapassar o carro da policia, que só desmobilizou nos limites do concelho. O resultado foi termos adiado o jantar para a hora da ceia, sentando-nos à mesa já muito perto da meia-noite. O raide, todavia, estava terminado e na manhã seguinte não precisávamos sequer de madrugar, pois só restava cumprir a ligação de regresso a Luanda. Portanto, ninguém se preocupou que o jantar durasse até às três da madrugada e houve mesmo quem tivesse resistido ao sono e continuasse pela noite dentro a dançar, acabando a festa ao amanhecer com um mergulho nas águas do Atlântico, mesmo em frente ao hotel.
A COMITIVA
[Texto e Fotos: Alexandre Correia]
Mergulhado numa densa nuvem de pó, que dava uma imagem difusa da paisagem e, pior do que isso, escondia os buracos do caminho, guiava há mais de uma hora pela picada quando reparei que desde que saíra do asfalto, na cidade de Gabela, ainda só tinha avançado cerca de 15 quilómetros. Ao ritmo a que a caravana seguia, seria impossível chegarmos a Quilenda à hora prevista. Desta vez, porém, ninguém tinha culpa do atraso. Ou todos tinhamos, simplesmente porque à hora do almoço a fome pesou mais do que horário programado. O almoço, numa churrasqueira à entrada de Gabela, embora tivesse sido encomendado com semanas de antecedência e sucessivamente confirmado nos dias anteriores, parecia ter sido improvisado no momento em que o restaurante foi invadido por mais de quatro dezenas de pessoas — os participantes no 4º Raid T.T. Kwanza Sul — que traziam fome a dobrar e encontraram comida para apenas metade. Ficou logo bem claro que ninguém saíria dali sem ter comido a refeição a que tinha direito, mas nem os relógios páram nem os frangos assam instantaneamente, pelo que a hora e meia desta paragem foi escandalosamente ultrapassada. Quando eu finalmente me pude servir, já uma boa parte dos meus companheiros estavam a postos para seguir viagem, mas a espera pelos mais atrasados — e talvez também a falta de um café — como que lhes provocou uma suave sonolência, tornada ainda mais agradável pelo calor do sol. Isso permitiu-me ter sido um dos últimos a chegar ao restaurante e o primeiro a partir, adiantando-me para tentar ganhar o tempo suficiente para conseguir parar na esplanada do centro da cidade, tomar um café expresso e voltar a partir devidamente colocado na cauda da caravana, sem que alguém desse pela minha falta e fizesse deter a marcha, como seria suposto que aconteceria até me encontrarem. O plano era perfeito, mas não contava com as obras de renovação dos espaços públicos da cidade, cujos trabalhos tinham precisamente acabado de chegar ao jardim da praça central, que foi isolado por tapumes e obrigou ao encerramento temporário da esplanada e do bar. Era irónico não conseguir tomar um café numa terra toda ela rodeada por abundantes cafezais, mas foi isso que aconteceu. E graças a este plano frustrado, acabei por ser um dos primeiros a avançar para a picada que liga Gabela a Quilenda, provavelmente um dos caminhos de terra com mais buracos por quilómetro entre todos os que já percorri em inúmeras destas aventuras. Só a Nissan Hardbody do líder da expedição seguia à frente da minha, pelo que não era por falta de habilidade ao volante nem de experiência em todo-o-terreno que não íamos mais depressa; era porque não dava mesmo para ir mais depressa. A visita a esta vila, perdida a meio caminho entre Gabela e Porto Amboim, não era uma visita qualquer e sabíamos que estava à nossa espera uma multidão, encabeçada por todas as autoridades e as chamadas “forças vivas” da terra. Até tinha vindo gente das aldeias vizinhas só para receber e aplaudir a comitiva, como diziam entre si. O encontro entre uns e outros estava previsto ter lugar na rua principal, onde fica a velha escola primária — numa das esquinas —, o jardim público com a sede do Clube local, mesmo ao lado, o edifício da sede do município, em frente, e a igreja, na ponta oposta, diante do jardim. Quilenda era o único município da provincia do Kwanza Sul que nunca tinha testemunhado a passagem da caravana desta expedição. E por um triz a visita não foi adiada, pois duas semanas antes de termos saído de Luanda a estrada estava intransitável, arrasada pelas chuvas. Reabriu ao trânsito apenas uns dias antes e somente no troço entre Gabela e Quilenda. E como a ideia era que a caravana daí seguisse até Porto Amboim, para depois descer a estrada costeira até Sumbe, onde nessa noite — com o tradicional banquete oferecido pelo Governador do Kwanza Sul — terminava a quarta edição do raide, ainda se pensou deixar isso para outra oportunidade. Porém, adiar a visita seria frustrar as expectativas daqueles que nos esperavam há quatro anos. E compreendi isso perfeitamente quando lá cheguei... Assim que as duas primeiras pickups entraram em Quilenda, passando defronte do posto da policia, à entrada de uma rua que se alarga e é divida ao centro por um canteiro com árvores — seguindo uma disposição típica do período colonial — imediatamente percebi a agitação. Um bando de rapazes desatou a correr rua acima, em direcção ao centro, anunciando a toda a gente que “a comitiva está a chegar”. Bastou segui-los para perceber onde é que tinha de ir: até ao cimo da rua, a uma rotunda delimitada por pedras que não escondiam ter sido caiadas de branco há muito pouco tempo — como aliás as pedras que contornavam todos os canteiros no meio das ruas. Parecia que estava ali a população toda, dividida em três grupos bem distintos. Os membros da administração do munícipio e as individualidades importantes da vila, desde o padre aos professores, passando pelo chefe da policia, aguardavam-nos no cimo das escadas de acesso às instalações da autarquia; em baixo, junto ao muro, estavam os representantes do poder tradicional, os sobas, à vontade uma trintena deles, todos vestidos com uma farda de cor de areia e alinhados como se estivessem numa formatura militar. E até parecia que estavam. Em frente destes dois grupos, bem no meio da rua, estava o povo todo. Muita gente mesmo. Mais mulheres do que homens, imensas com bebés presos às costas, amarrados com capulanas coloridas, e bastantes crianças, que transbordavam de curiosidade e de excitação. E até denunciavam algum medo. Grande parte desta gente não tinha memória de alguma vez uma comitiva assim ter visitado Quilenda. E o orgulho das autoridades não podia ser maior, pois consideravam a nossa visita como uma “comitiva oficial”, ou não se tratasse de um raide promovido sob a égide de duas entidades oficiais — o Governo da Província do Kwanza Sul e a Câmara Municipal de Almada. Foi nessa altura que senti como era realmente importante para aquele gente receber-nos na sua terra perdida. O que para nós era um frete, uma deslocação que ninguém tinha começado com ânimo, mas sim pela obrigação de cumprir com o programa — pois o cansaço de longos dias a percorrer picadas esburacadas e poeirentas já era forte —, era encarado de modo completamente diferente por quem nos aguardava; era motivo de enorme orgulho, para além de uma grande excitação. Quando chegámos, vi expressões de contentamento nos olhares daquela gente toda. E logo esqueci o sacrifício que tinha sido percorrer aquela picada. Um sacrifício que, diga-se de passagem, ainda iria repetir quando terminassemos a visita. Mas aqueles sorrisos, o sentir que era assim tão importante termos ido lá, superou isso tudo. O frete deu lugar ao prazer de termos conseguido corresponder às expectativas. E uma das coisas boas da vida é conseguirmos isso: corresponder às expectativas. Antes de mais, às nossas. Mas também às de quem, como naquele dia sucedeu com o povo e as autoridades de Quilenda, se mobiliza por nós. Quantas vezes não nos acontece passarmos por isso com uma absoluta indiferença? Provavelmente, todos nós já provocámos decepções dessas. Neste caso, felizmente que fomos ao encontro dessas expectativas, pois a avaliar pela festa que estava preparada em nossa honra, se não aparecessemos teríamos ferido o orgulho daquela gente. Assim que estacionei, depois de descrever a rotunda, começaram logo a ouvir-se os batuques, sinal para o povo arrancar a festa. Esperavam dúzia e meia de pickups, com mais de quarenta pessoas, e apareceram só duas, com dois pares de ocupantes. Como não vinham mais carros atrás, a festa interrompeu-se. A nossa chegada era um falso alarme. A comitiva ainda vinha a caminho. Vinha sim e demorou uma boa meia hora, em que até nós os quatro ficámos impacientes — interrogando-nos se tinha acontecido alguma coisa ao grosso da coluna — quanto mais aquele povo todo, que já ali estava há umas horas... O pó, aquele maldito pó, era o culpado de tamanho atraso. O pó e os buracos infernais. As pickups chegaram em grupos de duas ou três, com alguns minutos de intervalo entre si, que eram o tempo necessário para deixar assentar a poeira. A tarde estava mesmo no final quando a festa recomeçou, repetindo um ritual que já era familiar aos veteranos desta expedição: intermináveis apresentações de cumprimentos, alguns discursos de boas vindas e de agradecimento pela vinda de uma comitiva, uma festa popular com música e danças, e outra festa, mais resguardada de olhares públicos, só para os membros da comitiva e para os anfitriões. Esta última, como normalmente, metia comes e bebes. Afinal, as boas celebrações têm lugar à mesa. Em 2005, no decurso do primeiro destes raides por Angola, quando chegámos à vila de Seles descobrimos que tinham organizado não um, mas sim dois jantares em nossa honra. E como não podíamos fazer a desfeita aos que nos convidavam, tivémos de ter estômago para comparecer aos dois repastos. Foi uma barrigada de galinha de cabidela e caldeirada de cabrito — logo por azar as ementas foram quase idênticas... — mas ninguém ficou ofendido, nem deu pela duplicidade de jantares. E para nós, foi como se tivessemos feito um intervalo entre o primeiro e o segundo pratos. Agora, porém, era diferente. Tinham preparado um lanche na residência da administradora de Quilenda e apesar do nosso atraso nos recomendar que partissemos quanto antes, repetindo o percurso até Gabela, não houve coragem para recusar o convite, tal era a satisfação por finalmente termos ido a esta vila. E como as palavras são como as cerejas — atrás de uma vem sempre outra... — o que tinhamos discretamente combinado que seria uma visita de médico, só o tempo necessário para corresponder ao formalismo da visita, acabou por tornar-se num encontro descontraído e demorado. Só nos apercebemos que as horas continuavam a passar quando começou a escurecer. Ao desperdirmo-nos, explicando a urgência de regressarmos à cidade de Sumbe, para o banquete com o Governador, o chefe da policia de Quilenda quis ser prestativo e imediatamente requisitou uma escolta para nos acompanhar até Gabela. Esqueceu-se foi de dar indicações ao motorista do jipe da policia para ir tão depressa quanto pudesse. E como não o fez, o condutor decidiu converter a sua missão num vagoroso desfile através da picada, rolando devagar, parando para passar cuidadosamente nos buracos mais fundos, abrandando ainda mais à passagem pelas localidades. Mais deseperante não podia ter sido. Ninguém tinha coragem de ultrapassar o carro da policia, que só desmobilizou nos limites do concelho. O resultado foi termos adiado o jantar para a hora da ceia, sentando-nos à mesa já muito perto da meia-noite. O raide, todavia, estava terminado e na manhã seguinte não precisávamos sequer de madrugar, pois só restava cumprir a ligação de regresso a Luanda. Portanto, ninguém se preocupou que o jantar durasse até às três da madrugada e houve mesmo quem tivesse resistido ao sono e continuasse pela noite dentro a dançar, acabando a festa ao amanhecer com um mergulho nas águas do Atlântico, mesmo em frente ao hotel.
Mergulhadas numa nuvem de poeira, as Nissan Hardbody do 4º Raid T.T.Kwanza Sul entraram em Quilenda bem mais tarde do que o previsto. O caminho desde Gabela até esta vila estava num estado tal que a média de andamento rondou os 15 km/h.
Quem chega de visita deve cumprimentar os visitados. E a regra do protocolo diz que os anfitriões devem receber os seus convidados à porta. Nenhuma destas regras foi desvirtuada na nossa visita a Quilenda.
E a tradição também diz que uma comitiva deve ser recebida com um discurso. Em Quilenda, a festa só parou para ouvir as "palavras de circunstância" ditas pelas autoridades locais em honra dos visitantes, assim como pela réplica por parte de uma das "autoridades" da caravana, que agradeceu publicamente a atenção que nos foi dispensada.
Assim que terminaram os discursos, fizeram-se ouvir de novo os batuques e o povo voltou a formar uma roda gigante, dançando alegremente diante da sede do município.
Até os bebés participaram na festa. Amarrados às costas das mães, fartaram-se de dançar!
A festa popular, na rua principal de Quilenda, terminou ao cair do dia. Mas a comitiva tinha ainda uma pequena celebração privada, na residência da administradora local...